sábado, 18 de maio de 2013

O príncipe mimado

(Para Sofia)

Vivia um reino às voltas com o destino de seu príncipe.

O rei, inquieto com o futuro daquele menino que já vislumbrava homem, resolveu fazer o que sempre fazem reis em fábulas: uma festa para escolher princesa.

E pôs seus serviçais à busca de jovens que cativassem tão exigente príncipe. Já que pedido de rei é ordem, não precisou reiterar: mensageiros se lançaram às pressas pelo reino até suas bordas mais distantes.

Como a vida dos súditos não estava fácil, choveu candidatas a princesa. Algumas muito belas, outras nem tanto. Umas estudadas, outras tantas nem tanto. Algumas bem intencionadas, um monte nem um pouco.

Todas, no entanto, juraram dedicação sem fim, afeto desmedido, amizade perpétua, paixão duradoura, amor eterno etc etc etc. Coisas de aspirantes à princesa. E nenhuma deixara de ler “O Pequeno Príncipe”.

Como toda família considerava ser dela a futura princesa, anteciparam a folgança. Mas a longa espera pelo príncipe conduziu os reinóis a polêmicas, maledicências  apostas e outras condutas que até o rei duvidava, visto ter seu povo por afável e educado.

Não precisou muito para o rei perceber que desde o anúncio da festa seu reino passara a ter pouca governança e muita reinação. Vendo que realmente em seus domínios reinava a balbúrdia, bradou solene:

 - Que seja logo feito o raio dessa festa!

Deste modo, veio o dia da festança. À porta do castelo, pencas e pencas de moçoilas chegavam de terras próximas ou distantes, embaladas pelo sonho do príncipe amado e outras coisas – diziam – pouco importantes, como vestidos finos e jóias. Vinham a pé ou cavalo, em carroças, charretes ou mesmo, as muitas desafortunadas, nos ombros dos parentes.

Ante esbaforidas moças que invadiam seu castelo, o príncipe praguejava ser preferível a solidão das masmorras àquela barafunda organizada pelo pai.

            Convém mencionar que, na ânsia de bem casar as filhas, dizia o povo ter o príncipe grandes virtudes, embora fosse lembrado mesmo por seus muitos defeitos. Era voz corrente ser o príncipe mimado demais, rabugento demais e um tanto quanto chato.

Talvez fosse tudo isto mesmo, ainda que os que o conheciam tivessem como certo uma só coisa: o fastio do príncipe com o mundo fazia-o desdenhar tudo o que lhe era próximo ou distante.

Mais aborrecido ainda estava o rei com a situação de seu herdeiro. Com enfado, ordenou então o início imediato da procissão de jovens casadouras. Como para o príncipe desgraça pouca era bobagem, foi-lhe determinado que bailasse com todas, uma após uma, para melhor escolha da felizarda. E assim se fez.

Boquiabertos, povo e rei aguardavam o bailar para conhecer a preferida do príncipe. Para momentos de tanta importância havia o porta-voz do rei, que ao fim das infindáveis danças perguntou em tom pomposo e bajulador:

-          Bailaste como um anjo nobre príncipe, o quê tens a nos dizer de tão lindas jovens?

-          Venerável rei, querido povo, bem sei que dançar com belas damas não é nenhum estorvo, ensaiou belo discurso o príncipe, arrancando sorrisos. E prosseguiu:

-          Embora sobre pernas bambas e pés esfalfados, dou a saber minha opinião sobre as garotas que como num sonho dancei:

-          A primeira
é moça bela,
mas cheia de remela!

- A segunda
É moça boa,
pena rir à toa!

- A terceira,
parece uma boneca,
se bem que meio careca!

- A quarta
é moça divina,
mas tem canela fina!

E prosseguiu o príncipe, para desconforto do rei:

- A vigésima
é moça de muita graça e leveza,
mas também de farta lerdeza!

E seguiu a tagarelar, para desgosto do rei:

- A centésima
é moça atraente,
mas deveras saliente!

E concluiu, para fúria do rei:

- Por fim, a milésima
é moça bem apresentada,
mas pra lá de assanhada!

            Com fastio, mas com também certo amor à vida, fugiu o príncipe tal um raio para seus aposentos, já prevendo a reação do pai e do povo.

E houve reação. Naquela manhã, toda a produção de tomates e ovos das redondezas do palácio foi lançada pelos súditos ordeiros na cabeça dos barões, duques, cardeais, bispos, generais, do papa e do próprio rei.

Com pouco feijão à mesa e sem o sonho da realeza, deixou o povo, a partir de então, por raiva, de pagar impostos.

             A princípio, o rei foi gentil: enviou carta cheia de filigranas aos reinóis relatando muito do bom que o fisco propiciava ao povo e pouco do muito que tais tributos ofereciam à boa vida da nobreza. Sem sucesso, logo adotou estratégia menos elegante. Recorreu então à masmorra, à chibata, ao desterro. Mesmo assim, nada de imposto.

Privado de seus tributos, o rei vislumbrou a ruína de sua dinastia, a agonia de seu reinado, o fim de seus privilégios. Tomado de cólera, determinou aos poucos que ainda o serviam:

-          Conduzam às soleiras deste palácio o diabo de uma princesa! Vasculhem os vales mais distantes, lancem-se além-mar, fustiguem povos nunca dantes vistos. Ao poder do ouro ou força das armas, tragam-me uma princesinha qualquer ...please!

Ao alvorecer, a armada do rei saiu alvoroçada em busca de uma amada para o príncipe. Tanto vasculharam que o mundo se fez pequeno. A serviço do rei desbravaram novas rotas, confrontaram civilizações até então desconhecidas, se depararam com cenários paradisíacos, oceanos bravios, monstros cruéis. Alheios a tudo isso, os serviçais do rei tinham por único tesouro aquilo que fora rejeitado pelo príncipe... uma princesa!

E no milésimo dia encontraram o bem precioso. Em reino de mil palácios e incalculável riqueza, foram informados da existência de uma princesa. Bela, bela não era, convenhamos, mas lhe bastava a nobreza.

Sem demora, os oficiais do rei fizeram uso da força das armas, uma vez que o poder do ouro não lhes era lá essas coisas. A lenda diz que se travou batalha de mil dias, embora vozes aqui e acolá – maldosas, decerto - garantam que o reino de mil palácios não tenha feito tantas objeções, cedendo sua princesa até com certo alívio. 

De uma forma ou outra, os bravos soldados do rei retornaram ao castelo com a princesa e sob aclamação pública. Mesmo sedada, vendada e amordaçada, ficou para sempre na memória do povo a imagem da entrada triunfal da princesa nas dependências do palácio, linda e plena de felicidade, como num conto de fadas.

O rei, agora menos angustiado, exigiu a presença do príncipe e, mais que isto, um bailar de sete dias sem descanso para que o rapaz finalmente se convencesse das alegrias do matrimônio.

E assim se fez. Bailou, bailou, bailou o príncipe sete dias e sete noites sem parar. Até que o porta-voz se fez ouvir, tomando para si a irritação do rei:

-          Bailaste como um condenado nobre príncipe, desembucha com presteza tua opinião a respeito de tão delicada e nobre dama!

-          Exausto, desfalecido sobre o mármore do salão, balbuciou o príncipe, quase inaudível, mesmo com tamanho silencio e atenção de todos:

- Para minha surpresa
é moça de rara beleza,
de delicada nobreza,
uma verdadeira princesa,

(silêncio, silêncio, silêncio, aflição, ânsia, angustia...)

...mas tem a língua presa!!!!

Aaaaaaahhhhhhhhhh!!!!!!, exclamaram todos, lançando-se de pronto sobre o príncipe, que, mesmo esgotado, reuniu forças para, tal um coelho, fugir por léguas e léguas.

Quanto ao rei, foi escrachado e em seguida deposto. Sem palácio, jóias, carruagens, pajens e outras bobagens, restou-lhe levar a vida para aonde a vida lhe levasse. Comprou uma casinha, em longas prestações, lá pelos cantões do reino, agora uma república.

Do príncipe, não queria mais ouvir falar. Até que um dia, sua esposa, a antiga rainha, de tanto insistir, o convenceu a novamente abrigar o pobre rapaz.

Fustigado sem descanso pela mulher, aquele que antes fora rei venerado finalmente aceitou o retorno do filho, agora não mais príncipe.

           Acomodado novamente em casa, o ex-príncipe, ainda solteiro, voltou a receber o mimo materno, para desgraça daquele que já fora rei:

-   O que achou da sopinha de aspargos que mamãe fez para você esta noite, nobre filhinho?

-  Ora, mamãe,
adoro aspargos,
embora amargos,
e a sopa não está nada mal,
pena falte sal!

Do canto onde estava o rei voou um tamanco, que, certeiro, encontrou a testa do mimado príncipe.

Fim!


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