segunda-feira, 15 de abril de 2019

A filosofia dos ratos em quatro atos - quarto ato


ATO 4 – O MORRER

(Catacumbas do Palácio, descansa o gato e lá se embrenha o rato)


Rato
Uau! Afinal um animal para eu tratar de igual para igual.

Gato
 Aiiiiii! quem me finca os dentes?

Rato
 Longe de mim tal ato vil, só o acariciei com afiados dentes o gordo quadril.

Gato
 Tentou me matar!

Rato
 Não esqueça que sua vida se desdobra em mil.

Gato
 Exagero seu, pois conto com apenas sete.

Rato
 É o bastante para vocês gatos não nos darem sossego. Por acaso doeu-lhe uma gentil mordidinha?

Gato
Para tanta dor nem se faz preciso morte!

Rato
 Teve é sorte, tanta sanha nossa troca por pequeno corte.

Gato
 Cortes faz em quem até então lhe era cortês.

Rato
 Cortesia é o que mais ratinhas.

Gato
 Ratinho sim terei por janta...

Rato
Sugiro desde já outra dieta gordo gato, tenho por hábito não ser muito digestivo.

Gato
Guardo bem feitas receitas de ratos.

Rato
Acuado, circundado por perigosas presas, sugiro uma boa amizade à uma má digestão.

Gato
Com os ratos nós os gatos queremos uma amizade encarniçada. De você tenho por ambição tão só a carne.

Rato
Escarnece dos ratos e quer nos reduzir a ossos.

Gato
São-lhe os ossos do ofício de uma natureza de rato.

Rato
Alimentar-se à custa de seu interlocutor não é um ato civilizado.

Gato
Doravante, o devorarei com bons modos. Convenhamos que maus modos se sepultam à força do bom apetite.

Rato
Moderar o apetite é de boa etiqueta.

Gato
Com presa tão suculenta posso fazer desta uma cerimônia lenta.

Rato
Gentileza sua, mas não estou para a morte hoje.

Gato
Quem em vida a morte não ronda?

Rato
Desejo morrer de morte vivida.

Gato
Morrerá de morte comida.

Rato
É sempre possível nos entendermos já que a natureza não nos fez racionais. Deixemos aos homens os mal-entendidos e os malquereres.

Gato
A evolução me fez gato e a você rato. Nossos quereres são desiguais, és iguaria, eu apetite.

Rato
Quem diria, embora tão distintos, o gato me tem por iguaria. Agradeço a corte, mas temo os cortes, as feridas e a morte.

Gato
De fato, pretendo com minhas garras desgarrar-lhe a vida.

Rato
Devo então com ágeis patas fugir-lhe à corte. Oh, destino cruel! Um rato tão requintado, tão apurado...

Gato
Por apurado ser, em apuro está.

Rato
Oh amarga covardia! Sete felinas vidas contra um tão só indefeso rato. Você transita leve entre dois mundos e, eu da vida só tenho de ir, em mão única, à morte.

Gato
Desta vida eu saio e entro, saliento.

Rato
Nesta vida eu rato fico, ratifico.

Gato
Poupe o alvoroço, adiar não adianta, se não és almoço, és janta.

Rato
Quem esbanja vidas faz pouco da morte. Eu cravo as garras na vida e ratinho morte.

Gato
Não seja avarento...

Rato
A morte enganou-se de presa. Aquele que de sete vidas se farta que primeiro parta.

Gato
Gosto de economizar minhas vidinhas. É hora de ter-lhe preso às minhas presas.

Rato
Sou presa, mas me quero livre.

Gato
Nas garras o gato lhe tem à marra.

Rato
Folga-me ver eu solto.

Gato
Melhor avançarmos com isto.

Rato
Nesses casos, sou mais o recuar que o avançar, o adiar do que o antecipar.

Gato
Proponho um sincero abraço e alguma carnificina.

Rato
Vontade sua comezinha comer-me crua carne minha.

Gato
Não tenho asco de seu corpo em churrasco. Se não cruas, caem-me bem as ossadas e as carnes bem passadas.

Rato
Cruel assaz és, assas já o rato sem ainda tocar-lhe fogo.

Gato
Cruel seria ao meu apetite apreciá-lo tão só cru. Tanto alvoroço está a perturbar meu almoço. Seja compreensivo.

Rato
Se cedo, vou-me daqui morto cedo.

Gato
Por ser rato, devorar-lhe tenho sedes. És carnudo e saboroso.

Rato
Elogios rasgados de quem rasgar meu lombo quer. Meus ossinhos preferem se manter grudados às carnes. Sirva-se do banquete de suas muitas vidas e deixa eu roer a minhazinha.

Gato
Acha que tenho sorte? Não se dá conta que se numerosas vivências tenho, muitas mortes comigo levo? Em vidas os gatos carregamos o peso da morte.  Minhas muitas vidas sustentam o fardo das minhas muitas mortes.

Rato
O bispo jura que com a morte levamos nos ombros a carga da vida. Se assim, é nossa vida que dá o prumo da morte. Daí o inferno e o céu, a glória e a desventura. Eu rato prefiro em vida me lambuzar nos prazeres do corpo, deixando aos infelizes dos homens as delícias da libertação da alma.

Gato
Vida e morte estão visceralmente amarradas. O morrer só é dado a quem vive. Ninguém vivencia a morte, se assim o diz é por que está vivo. A morte que conhecemos é o ato vivo de morrer, sempre antes do último suspiro. Se há vida depois da morte, então não é morte. Para além, só o “não ser”, o impenetrável. Alguns aplacam a dor da existência aspirando ao além.

Rato
O gato quer me tirar a vida e ofertar a morte. Se as duas estão visceralmente amarradas, que não seja com minhas vísceras. Quando estou aqui presente é porque a morte aqui não está, se ela se apresenta é porque eu deixei de me apresentar. Para os ratos é muito simples: a morte não está onde estamos. No teatro da vida, se estou em cena, ela não entra, se ela entra, eu já não estou.

Gato
Tanta barata filosofia é perfeito mote para um fatal bote!

Rato
Ai, pego fui! Oh, morte doída! Às garras do gato, carne-moída; à boca do gato, triste comida!

Gato
Para que tanto alvoroço, só quero meu focinho colado em seu pescoço.

Rato
Entrementes, estou entre dentes. Fala com a boca e me morde com os dentes.

Gato
Manterei a boca fechada, ela desde já se cala.

Rato
Para ser sincero, folga-me nesse instante que se abra comigo, a começar pela grande boca que me abocanha.

Gato
Sempre fui muito fechado, começando da boca. Quando ela se abre, logo fecha, para depois se abrir, e assim se vai a suceder. Chamam isto de mastigar. Fustigar e mastigar a presa é um vício de minha natureza.

Rato
Em tremores e pálido, sinto a morte eu seu hálito.

Gato
Meu hálito de morte vem de quando fiz da morte um hábito.

Rato
Neste mundo em pouco não mais habito, eis do rato o último ato por mau hábito de um gato.

Gato
Antes que com minha boca sua morte eu gere, o já morto rato algo sugere?

Rato
Antes de morrer, só correr me ocorre.

Gato
Pelos meus dentes sua pouca vida escorre e nem mais as patas ágeis o socorre.

Rato
Minha vida falha... na agonia, que me valha a fúria e a ironia.

Gato
Entretanto, está entre dentes.

Rato
Com cruel dentada no lombo, ferido tombo.

Gato
Tenha sua situação como abraços candentes de um amigo cheio de dentes.

Rato
Doravante, arrasto minha dor avante.

Gato
Se o rato aquieta, ajuda em muito minha dieta.

Rato
Se o gato o rato morde talvez em demasia engorde.

Gato
Ah, rato de muita carne e alguma fibra. Eu a encarniçar e tu a escarnecer.

Rato
Vou ao duelo com dentes e ironia, doutro modo não iria.

Gato
Em derradeiro ato, vou com tudo fazer-me gato sortudo.

Rato
Contudo, não lhe devo nada.

Gato
Nada deve rico rato, mas tem muito a pagar.

Rato
Em andrajos, ando e ajo.

Gato
Despe-se do arrojo e do humor e sinto em teu bojo tão só temor.

Rato
É comum o medo me bater à porta. Quando a bravura chega ao peito, logo no lombo o temor aporta. Fácil então se corrói minha têmpera de herói e o rato em fuga medroso se porta.

Gato
É você sempre valente, mas medroso de repente.

Rato
Sou fraco e sou valente, do assim confuso eu abuso. Às vezes crédulo e sempre incoerente. Em minhas fuças cabe tudo, nela transita o crente e o ateu, às vezes ambos, pois o ambivalente é o jeito meu.

Gato
Certo neste mundo é que será comido antes do primeiro gemido.

Rato
Quando assim premido, me porto destemido.

Gato
Tanto assanho é porque ainda não o arranho.

Rato
Um facínora a morte fascina. Do fim do rato o gato faz sina. 

Gato
A ideia de lhe devorar não descarto e de sua conversa estou farto.

Rato
Oh, desta vida eu hoje parto, de morte comida ou de infarto.

Gato
Tenho muita afeição por minha refeição.

Rato
Seu apreço me cobra alto preço.

Gato
É assim da natureza e não porque eu queira, porqueira.

Rato
Ai, a natureza com presas foi mais ágil que minha destreza.

Gato
Eis a hora temida minha adorável comida.

Rato
Ah, antes corria eu risco, agora sou petisco.

Gato
Diz o homem que quando se morre voa dele a alma.

Rato
Creio que a vida finda e a alma afunda.

Gato
Diz o homem que se a morte vem nos sobra o além.

Rato
Se da terra vim, ela é meu fim. Ela vindo o rato finda.

Gato
A morte transcende...

Rato
A mim transtorna...

Gato
Para que tanta teima, guloseima? Deixa o gato se esbanjar com tão bom manjar.

Rato
Ah, desgosto, ao menos saberei se a vida é tudo e a morte nada, ou de tudo isto o oposto. Pelo malfeito do gato, doutro lado agora descanso em mau leito.  A vida é dor, mas ao menos oferta o queijo. Adeus!