(Biblioteca do Palácio, lê
o monge e entra o rato)
Monge
Quem adentra o templo da
saber?
Rato
Um rude rato, um bronco
ser, que vem de longe saber do monge.
Monge
De fato, erudito sou e
verdades dito.
Ratos
E eu todo paciência a
ouvir-te tanta ciência. Cada tua palavra dita aplaca minha desdita.
Monge
Abandone as patifarias e
as ironias. Quem almeja saber se enfurna na clausura e foge da usura.
Rato
Sou dado aos subterrâneos,
não aos subterfúgios.
Monge
Julgo eu que o saber não
se oferta fácil ao vulgo, o sábio tem a verdade sob seu jugo. As verdades
estritas já estão todas escritas.
Rato
Mas as verdades dos ratos
pairam livres dos livros. Nosso saber é reto, e tudo que nos convém, perdão
assim dizer-te, pessoa tão pia, principia na boca e finda no reto.
Monge
Finde a palavra que não de
minha lavra.
Rato
Para ser franco, doem-me
os dogmas. Tantos duros princípios a razão finda e deixam curtos pensares à
larga. Prometem largo e dão estreito.
Monge
Estás a negar as muradas
do conhecimento, as fortalezas do saber?
Rato
Obrigo-me a dizer-te que a
pele e as entranhas minhas falam mais do que os altos palácios. Meu corpo é
meu cabedal, ele me eleva mais alto do que a mais alta tua catedral. Minhas
ciências são minhas carnes e meus apetites.
Monge
Rato glutão, tenha fome é de
saberes, porta-te como eu acadêmico.
Rato
Quando não como, me porto
é como anêmico. Não te atinas para as coisas intestinas?
Monge
Quando nas ideias
principio, resta ao corpo um destino pio.
Rato
Ímpio ou pio, a vida nos
leva como um rio.
Monge
Serpenteias em meus
pensamentos retos. Meu refletir límpido se choca com teu ruminar ímpio.
Rato
Tens sábio um ranço lógico
metodológico. Faz-te de ti um reto retilíneo, amas tão só o concreto apolíneo,
se bem que te expressas num curvo curvilíneo. Falta-te o abusado abusivo, mas,
ainda que faltando-te o insano, te resta muito do tirano.
Monge
Se eu arbitrário, vejo em
ti um agudo vezo pelo contrário, pelo avesso.
Rato
Tenho sim quedas pelo de
ponta-cabeça, pelas voltas e viravoltas, pelos viras-e-mexes, pelo bom
malfeito. Pulsa em mim o cardíaco e o dionisíaco.
Monge
De tua cara e das tuas
fuças brotam palavras em escaramuças. Quando começas a tagarelar careces de
plano de voo, não sabes de onde partiu, não sabes aonde chegar.
Rato
A fala dos ratos imita a vida, é cheia de
turbulências. Ora alçamos voo ao verbo, ora arremetemos as palavras.
Monge
Escapam-te da garganta
evasivas. Em tua boca circulam tão só circunlóquios.
Rato
Se meu discurso é como
rodamoinho, falta ao teu sustentação. Tentas alcançar as nuvens, mas pilotas
perigosamente ao rés do chão.
Monge
Douro frases com bela
rima, uso palavras como imã. Semeio cada palavra de minha lavra.
Rato
Um campo de parolagens
semeado com férteis bobagens.
Monge
Teus discursos firmas em
débeis rimas. Um rato pateta puxado para esteta. Acaso te queres aboletar em vida
de poeta?
Rato
Meu louvor literário tem
um vezo ordinário. Mas sempre há quem atura a má literatura. Daí que peço e não
descarto o sucesso, animado pela erudição que não vejo neste salão.
Monge
Roedor dos diabos, assim
como teu corpo imundo e ligeiro se esgueira pelas frestas do meu palácio, teus
argumentos percorrem nossos cérebros, causando tanto confusão como pestilência.
Rato
Há quem cego concorde com
o sábio e o lorde. Tementes são de quem mente. Eu me dou só comigo e meu
umbigo.
Monge
Ainda que por instantes,
aventura teu pensar no remanso destas estantes.
Rato
Avento tão só em
tempestade.
Monge
Rato usuário de frases labirínticas e sintaxes
distorcidas, tanto fazes que entras tagarelando em minha mente.
Rato
Procuro assim fazer, mas
adentro um cômodo vazio.
Monge
Vai-te embora rato, levas
para longe teu palavrório, Suma!
Rato
Ainda que não suma,
falarei em suma. Eu bem me arrumo num só reto rumo. Aqui estou e nem sei bem
quem rato sou. Certezas são para humanos, selvagens animais. A verdade se
aninha em animais brutais racionais.
Monge
Quanta heresia, estou
pasmo.
Rato
Assim se faz um asno.
Monge
Ei de te revelar a
verdade.
Rato
Neste caso desembeste,
digníssimo mestre.
Monge
Afasta tuas alegorias,
pois adentro com minhas teorias.
Rato
Rato
Como dos vulcões as
magmas, emergem de vós em convulsões os dogmas.
Monge
É assim automático, quem
adentra este salão, sai dogmático.
Rato
Desta tua ciência o rato cansa, a medida do meu saber é o tanto de minha pança.
Monge
Senta-te e ouve meus
postulados.
Rato
Teus postulados devem ser
postos de lado.
Monge
Vivo hoje à míngua e com
ideias futuras, abrigo muitas culturas e levo jeito mesmo é para as
conjecturas.
Rato
Se à míngua, prive-nos
então de tua língua. A vida tarda e muda enquanto tu tartamudeias. Cesses as
asceses e todas tuas velhas teses. As toscas teses, as tolas teses.
Monge
Demos loas às ideias boas.
Rato
Julguemos mortas as ideias
tortas.
Monge
Penso grande e o céu é
claro.
Rato
Sou miúdo e o queijo é raro.
Monge
Deixa de rodeios e
contempla o sol.
Rato
Tenho por hábito a
penumbra. Para te ser mais claro, fico circunscrito aos circunlóquios.
Monge
Liberta-te! Erga o
focinho. Veja para além de tua vida comezinha.
Rato
Minha boa vida comezinha é
o queijo comer em tua rica cozinha. Às patas dou primazia, a elas segue meu aspirar.
Antes o concreto, depois a fantasia.
Monge
Fia-te em minha filosofia,
alteie do rés à razão.
Rato
Só faz sentido o que me é
sentido. A coisa não está certa só se a fome me aperta.
Monge
Quando a mente acendo a
coisa fica sendo.
Rato
Quando o bucho encho meu
mundo preencho.
Monge
De meu juízo brotam
verdades.
Rato
A resposta no lugar deve
ser posta. Tua verdade muito esconde, ela vem de onde tu respondes.
Monge
A verdade é íntegra. Só a
mentira é cega e muitos rebentos entrega.
Rato
A verdade do monge é farsa
se longe, o certo vira mentira quando deste palácio se lhe tira. Da cloaca de
onde vêm os ratos tuas certezas podem não ser tesas.
Monge
Falas muito empolado para
quem vem do pó. Se não te queres prolixo, jogue as más palavras no lixo. É do
bom juízo que se extrai corretas palavras.
Rato
Tudo que colho devo à
agudez do olho.
Monge
Com a ciência aprenda o
caminho do saber.
Rato
Prefiro professar minhas
ignorâncias.
Monge
Percebo que és um ser
intricado, cujo conhecer me demandam muitas hipóteses. É lógico que assim farei
pelo velho método do raciocínio lógico. Tu me induzes a pensar muito ao
contrário do que deduzo. Deste modo, devo fraciona-lo em muitas partes para
então das partes te conhecer o todo. Ei de aos pedacinhos ter-te em conjunto e,
com tudo junto, tornarei a te pensar em partes. Feito isto, ei de entender o
contexto para daí então cogitar-te em nacos de conceitos. Como a ciência só é visceral se te expõe as
vísceras, venha até mim para travarmos um prolífico colóquio científico.
Rato
Pensei que chamassem isto
de morte.
Monge
Meu pensamento sistêmico
às vezes se mostra polêmico. Mas não te acanhe neste imenso salão acadêmico. Só
queremos te descomplicar.
Rato
Sou um ratinho já bem
descomplicado, sem qualquer tino para o pensamento fino. Guio meu destino pelo
intestino e percebo que tudo que do mundo a mim se funde à ciência confunde.
Ficarei aqui paradinho para não provoca-la.
Monge
Tarde demais, ainda que
fique parado e mudo serás objeto de meu estudo.
Rato
Oh, antes voltar à velha
latrina que dar motivo a uma nova doutrina.
Monge
Sem razão opinas contra as
minhas disciplinas. Veja com teus olhos de rato como sou bom.
Rato
Em minha retina tão só
figura cretina.
Monge
Ei de alistar-te nas
fileiras do saber. Toma-te na cabeça um grosso livro.
Rato
Ai, socorro, voam do céu
ao chão muita erudição.
Monge
Na cabeça, para que talvez
assim os livros conheças.
Rato
Sou avesso a esse método lógico
pedagógico.
Monge
Não te farás mal, pois
entre nós sábios é tão usual.
Rato
Corro, como queira, desta
tática para ti tão corriqueira.
Monge
Esgueira-te de um modo muito
usado de aprendizado. Ainda que fugir-te tente, seu resultado é patente.
Rato
Patente para ti, para quem
foge soa um tanto patético. Antes minha voluntária inocência que a tua forçada
ciência.
Monge
Tal como há bom mel nas colmeias, nós os sábios nos banhamos nas fontes puras das boas ideias.
Rato
Deve ser por conta disto
que os humanos falam em meter os burros n’água. Beber as águas turvas de tuas
ideias só me promete diarreias.
Monge
Minhas palavras eis, as
digo aos mendigos e aos reis: Para safar-vos das vidas mortais, ide aos ideais.
Rato
Como o queijo real, não o
ideal. Fica com teu idealismo e eu com meu metabolismo. Teu falatório me é
ilusório.
Monge
Para o perene acene, se
não, a solidão.
Rato
Tenho a ironia por
companhia.
Monge
Estou pasmo com teu
sarcasmo. Vejo que nada cobre a tolice do pobre. És vassalo e ei de estuda-lo.
Rato
Com os lidos de mau modo
lido, aos sabidos dou-lhes o caos.
Monge
Vejo em meu objeto certo
fator de confusão.
Rato
É um modo de externar para
que lado eu pendo, o que aqui aos trambolhões aprendo.
Monge
Apertar-te-ei e aqui fico até
me dares algum conceito mais específico.
Rato
Darei preferência então às
ideias difusas e confusas.
Monge
Assim até eu me confundo. Abre
mão do entendimento racional do mundo?
Rato
Desejo-lhe sorte nas suas
sabedorias, mas ando com ânsias é das ignorâncias.
Monge
Nem um torrão da humana
razão?
Rato
Tenho certo apreço pelo que
não conheço.
Monge
Chafurdarás para sempre na
burrice.
Rato
Corro o risco, mas me
basta ser arisco.
Monge
A vida é perversa, porém
merece uma conversa.
Rato
Fica entre nós o dito pelo
não dito, o sabido pelo ignorado.
Monge
Haja paciência para impor
minha ciência. Busco algo análogo a um diálogo.
Rato
E eu quero qualquer coisa
entre a mudez e a estupidez.
Monge
Sua quietude é por demais
tagarela. Fala então, mesmo que ao seu modo falastrão.
Rato
Fugir de ti me vejo
incapaz, nesta situação só me compraz a paz. Dizer-te quero, ainda que de modo
um tanto insincero: erra quem quer a guerra. Quem a paz não a faz a terra
aterra. Há quem ria da tua sabedoria, quem zombe da tua teoria, nada disto é de
minha autoria.
Monge
Tuas palavras agora rompem
em rompantes, cada vogal e consoante te saem da boca dum modo galopante. Com
enfado, busco nelas um significado.
Rato
Palavras rifo para me ver
safo.
Monge
Um misto de petulância com
ignorância. Ordenar as palavras te ordeno.
Rato
Não tenho artísticas ambições
nem sou valente, Se me falta ambas, melhor então me ter por ambivalente.
Monge
Se o saber não cobiças é
por conta das tuas preguiças. O estudo é meu escudo.
Rato
Minha asneira se guarda
com uma peneira.
Monge
Devemos ir longe e fundo
saber do mundo. Faça cá cálculos e lá ilações.
Rato
Crie com as ciências as
tuas próprias inferências. Aqui, do queijo não me aquieto. Lá, da lábia faço
uso, pois só vence quem com a manha ao outro convence.
Monge
Assim tu meu sábio ódio
aguça, toma-te à fuça os isósceles e os Aristóteles.
Rato
Assim me ponho em fuga, melhor
ter a fuça livre dos livros.
Monge
Volta, ainda mal nos
conhecemos. Confabular é cimento para o conhecimento.
Monge
Deste salão e de teu torto
cérebro agora sair celebro.
Monge
Vai pois rato infame,
antes que eu me inflame.
Rato
Ante tua chama, noutro
lugar o dever me chama.