sexta-feira, 22 de março de 2019

A filosofia dos ratos em quatro atos - segundo ato




ATO 2 – O SABER

(Biblioteca do Palácio, lê o monge e entra o rato)


Monge
Quem adentra o templo da saber?

Rato
Um rude rato, um bronco ser, que vem de longe saber do monge.

Monge
De fato, erudito sou e verdades dito.

Ratos
E eu todo paciência a ouvir-te tanta ciência. Cada tua palavra dita aplaca minha desdita.

Monge
Abandone as patifarias e as ironias. Quem almeja saber se enfurna na clausura e foge da usura.

Rato
Sou dado aos subterrâneos, não aos subterfúgios.

Monge
Julgo eu que o saber não se oferta fácil ao vulgo, o sábio tem a verdade sob seu jugo. As verdades estritas já estão todas escritas.

Rato
Mas as verdades dos ratos pairam livres dos livros. Nosso saber é reto, e tudo que nos convém, perdão assim dizer-te, pessoa tão pia, principia na boca e finda no reto.

Monge
Finde a palavra que não de minha lavra.

Rato
Para ser franco, doem-me os dogmas. Tantos duros princípios a razão finda e deixam curtos pensares à larga. Prometem largo e dão estreito.

Monge
Estás a negar as muradas do conhecimento, as fortalezas do saber?

Rato
Obrigo-me a dizer-te que a pele e as entranhas minhas falam mais do que os altos palácios. Meu corpo é meu cabedal, ele me eleva mais alto do que a mais alta tua catedral. Minhas ciências são minhas carnes e meus apetites.

Monge
Rato glutão, tenha fome é de saberes, porta-te como eu acadêmico.

Rato
Quando não como, me porto é como anêmico. Não te atinas para as coisas intestinas?

Monge
Quando nas ideias principio, resta ao corpo um destino pio.

Rato
Ímpio ou pio, a vida nos leva como um rio.

Monge
Serpenteias em meus pensamentos retos. Meu refletir límpido se choca com teu ruminar ímpio.

Rato
Tens sábio um ranço lógico metodológico. Faz-te de ti um reto retilíneo, amas tão só o concreto apolíneo, se bem que te expressas num curvo curvilíneo. Falta-te o abusado abusivo, mas, ainda que faltando-te o insano, te resta muito do tirano.

Monge
Se eu arbitrário, vejo em ti um agudo vezo pelo contrário, pelo avesso.

Rato
Tenho sim quedas pelo de ponta-cabeça, pelas voltas e viravoltas, pelos viras-e-mexes, pelo bom malfeito. Pulsa em mim o cardíaco e o dionisíaco.

Monge
De tua cara e das tuas fuças brotam palavras em escaramuças. Quando começas a tagarelar careces de plano de voo, não sabes de onde partiu, não sabes aonde chegar.

Rato
 A fala dos ratos imita a vida, é cheia de turbulências. Ora alçamos voo ao verbo, ora arremetemos as palavras.

Monge
Escapam-te da garganta evasivas. Em tua boca circulam tão só circunlóquios. 

Rato
Se meu discurso é como rodamoinho, falta ao teu sustentação. Tentas alcançar as nuvens, mas pilotas perigosamente ao rés do chão.

Monge
Douro frases com bela rima, uso palavras como imã. Semeio cada palavra de minha lavra.

Rato
Um campo de parolagens semeado com férteis bobagens. 

Monge
Teus discursos firmas em débeis rimas. Um rato pateta puxado para esteta. Acaso te queres aboletar em vida de poeta?

Rato
Meu louvor literário tem um vezo ordinário. Mas sempre há quem atura a má literatura. Daí que peço e não descarto o sucesso, animado pela erudição que não vejo neste salão.

Monge
Roedor dos diabos, assim como teu corpo imundo e ligeiro se esgueira pelas frestas do meu palácio, teus argumentos percorrem nossos cérebros, causando tanto confusão como pestilência.

Rato
Há quem cego concorde com o sábio e o lorde. Tementes são de quem mente. Eu me dou só comigo e meu umbigo.

Monge
Ainda que por instantes, aventura teu pensar no remanso destas estantes.

Rato
Avento tão só em tempestade.

Monge
Rato usuário de frases labirínticas e sintaxes distorcidas, tanto fazes que entras tagarelando em minha mente.

Rato
Procuro assim fazer, mas adentro um cômodo vazio.

Monge
Vai-te embora rato, levas para longe teu palavrório, Suma!

Rato
Ainda que não suma, falarei em suma. Eu bem me arrumo num só reto rumo. Aqui estou e nem sei bem quem rato sou. Certezas são para humanos, selvagens animais. A verdade se aninha em animais brutais racionais.

Monge
Quanta heresia, estou pasmo.

Rato
Assim se faz um asno.

Monge
Ei de te revelar a verdade.

Rato
Neste caso desembeste, digníssimo mestre.

Monge
Afasta tuas alegorias, pois adentro com minhas teorias.

Rato
Como dos vulcões as magmas, emergem de vós em convulsões os dogmas.

Monge
É assim automático, quem adentra este salão, sai dogmático.


Rato
Desta tua ciência o rato cansa, a medida do meu saber é o tanto de minha pança.

Monge
Senta-te e ouve meus postulados.

Rato
Teus postulados devem ser postos de lado.

Monge
Vivo hoje à míngua e com ideias futuras, abrigo muitas culturas e levo jeito mesmo é para as conjecturas.

Rato
Se à míngua, prive-nos então de tua língua. A vida tarda e muda enquanto tu tartamudeias. Cesses as asceses e todas tuas velhas teses. As toscas teses, as tolas teses.

Monge
Demos loas às ideias boas.

Rato
Julguemos mortas as ideias tortas.

Monge
Penso grande e o céu é claro.

Rato
Sou miúdo e o queijo é raro.

Monge
Deixa de rodeios e contempla o sol.

Rato
Tenho por hábito a penumbra. Para te ser mais claro, fico circunscrito aos circunlóquios.

Monge
Liberta-te! Erga o focinho. Veja para além de tua vida comezinha.

Rato
Minha boa vida comezinha é o queijo comer em tua rica cozinha. Às patas dou primazia, a elas segue meu aspirar. Antes o concreto, depois a fantasia.

Monge
Fia-te em minha filosofia, alteie do rés à razão.

Rato
Só faz sentido o que me é sentido. A coisa não está certa só se a fome me aperta.

Monge
Quando a mente acendo a coisa fica sendo.

Rato
Quando o bucho encho meu mundo preencho.

Monge
De meu juízo brotam verdades.

Rato
A resposta no lugar deve ser posta. Tua verdade muito esconde, ela vem de onde tu respondes.

Monge
A verdade é íntegra. Só a mentira é cega e muitos rebentos entrega.

Rato
A verdade do monge é farsa se longe, o certo vira mentira quando deste palácio se lhe tira. Da cloaca de onde vêm os ratos tuas certezas podem não ser tesas.

Monge
Falas muito empolado para quem vem do pó. Se não te queres prolixo, jogue as más palavras no lixo. É do bom juízo que se extrai corretas palavras.

Rato
Tudo que colho devo à agudez do olho.

Monge
Com a ciência aprenda o caminho do saber.

Rato
Prefiro professar minhas ignorâncias.

Monge
Percebo que és um ser intricado, cujo conhecer me demandam muitas hipóteses. É lógico que assim farei pelo velho método do raciocínio lógico. Tu me induzes a pensar muito ao contrário do que deduzo. Deste modo, devo fraciona-lo em muitas partes para então das partes te conhecer o todo. Ei de aos pedacinhos ter-te em conjunto e, com tudo junto, tornarei a te pensar em partes. Feito isto, ei de entender o contexto para daí então cogitar-te em nacos de conceitos.  Como a ciência só é visceral se te expõe as vísceras, venha até mim para travarmos um prolífico colóquio científico.

Rato
Pensei que chamassem isto de morte.

Monge
Meu pensamento sistêmico às vezes se mostra polêmico. Mas não te acanhe neste imenso salão acadêmico. Só queremos te descomplicar. 

Rato
Sou um ratinho já bem descomplicado, sem qualquer tino para o pensamento fino. Guio meu destino pelo intestino e percebo que tudo que do mundo a mim se funde à ciência confunde. Ficarei aqui paradinho para não provoca-la.

Monge
Tarde demais, ainda que fique parado e mudo serás objeto de meu estudo.

Rato
Oh, antes voltar à velha latrina que dar motivo a uma nova doutrina.

Monge
Sem razão opinas contra as minhas disciplinas. Veja com teus olhos de rato como sou bom.

Rato
Em minha retina tão só figura cretina.

Monge
Ei de alistar-te nas fileiras do saber. Toma-te na cabeça um grosso livro.

Rato
Ai, socorro, voam do céu ao chão muita erudição.

Monge
Na cabeça, para que talvez assim os livros conheças.

Rato
Sou avesso a esse método lógico pedagógico.

Monge
Não te farás mal, pois entre nós sábios é tão usual.

Rato
Corro, como queira, desta tática para ti tão corriqueira.

Monge
Esgueira-te de um modo muito usado de aprendizado. Ainda que fugir-te tente, seu resultado é patente.

Rato
Patente para ti, para quem foge soa um tanto patético. Antes minha voluntária inocência que a tua forçada ciência.

Monge
Tal como há bom mel nas colmeias, nós os sábios nos banhamos nas fontes puras das boas ideias.

Rato
Deve ser por conta disto que os humanos falam em meter os burros n’água. Beber as águas turvas de tuas ideias só me promete diarreias.

Monge
Minhas palavras eis, as digo aos mendigos e aos reis: Para safar-vos das vidas mortais, ide aos ideais.

Rato
Como o queijo real, não o ideal. Fica com teu idealismo e eu com meu metabolismo. Teu falatório me é ilusório.

Monge
Para o perene acene, se não, a solidão.

Rato
Tenho a ironia por companhia.

Monge
Estou pasmo com teu sarcasmo. Vejo que nada cobre a tolice do pobre. És vassalo e ei de estuda-lo.

Rato
Com os lidos de mau modo lido, aos sabidos dou-lhes o caos.  

Monge
Vejo em meu objeto certo fator de confusão.

Rato
É um modo de externar para que lado eu pendo, o que aqui aos trambolhões aprendo.

Monge
Apertar-te-ei e aqui fico até me dares algum conceito mais específico.

Rato
Darei preferência então às ideias difusas e confusas.

Monge
Assim até eu me confundo. Abre mão do entendimento racional do mundo?

Rato
Desejo-lhe sorte nas suas sabedorias, mas ando com ânsias é das ignorâncias.

Monge
Nem um torrão da humana razão?

Rato
Tenho certo apreço pelo que não conheço.

Monge
Chafurdarás para sempre na burrice.

Rato
Corro o risco, mas me basta ser arisco.

Monge
A vida é perversa, porém merece uma conversa.

Rato
Fica entre nós o dito pelo não dito, o sabido pelo ignorado.

Monge
Haja paciência para impor minha ciência. Busco algo análogo a um diálogo.

Rato
E eu quero qualquer coisa entre a mudez e a estupidez.

Monge
Sua quietude é por demais tagarela. Fala então, mesmo que ao seu modo falastrão.

Rato
Fugir de ti me vejo incapaz, nesta situação só me compraz a paz. Dizer-te quero, ainda que de modo um tanto insincero: erra quem quer a guerra. Quem a paz não a faz a terra aterra. Há quem ria da tua sabedoria, quem zombe da tua teoria, nada disto é de minha autoria.

Monge
Tuas palavras agora rompem em rompantes, cada vogal e consoante te saem da boca dum modo galopante. Com enfado, busco nelas um significado.

Rato
Palavras rifo para me ver safo.

Monge
Um misto de petulância com ignorância. Ordenar as palavras te ordeno.

Rato
Não tenho artísticas ambições nem sou valente, Se me falta ambas, melhor então me ter por ambivalente.

Monge
Se o saber não cobiças é por conta das tuas preguiças. O estudo é meu escudo.

Rato
Minha asneira se guarda com uma peneira.

Monge
Devemos ir longe e fundo saber do mundo. Faça cá cálculos e lá ilações.

Rato
Crie com as ciências as tuas próprias inferências. Aqui, do queijo não me aquieto. Lá, da lábia faço uso, pois só vence quem com a manha ao outro convence. 

Monge
Assim tu meu sábio ódio aguça, toma-te à fuça os isósceles e os Aristóteles.

Rato
Assim me ponho em fuga, melhor ter a fuça livre dos livros.

Monge
Volta, ainda mal nos conhecemos. Confabular é cimento para o conhecimento.

Monge
Deste salão e de teu torto cérebro agora sair celebro.

Monge
Vai pois rato infame, antes que eu me inflame.

Rato
Ante tua chama, noutro lugar o dever me chama.