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sábado, 4 de junho de 2016
O paraninfo
(Ode às alegrias
insanas em tempos de arrazoadas aflições)
Meninas e meninos, país e mães,
convidados! A todos saúdo!
Jovens gostam de passear entre o
chiste e o chulo. Temo dever minha presença neste salão a ambos. Meninos fogem dos versos e das conversas
alexandrinas, das ideias metrificadas; antes o malfeito; preferível o gracejo
torto ao sisudo reto. Já professei e um tanto orei. Mas estou certo de que
meninos intrépidos me subiram a este púlpito em deferência às minhas misérias
vividas, não aos títulos tidos ou alunos bem aprovados. Não vou lhes ditar
lições de moral ou de vida, tanto mais que nunca tive uma e me definha a outra.
Que ironia, cortesias acadêmicas a um senhor sem faculdades... Não vou lhes
abrir as porteiras do futuro. Nietzsche cansou de esperanças e foi perseguir
realidades. Além do mais, sou um homem de poucos predicados para semear
predições.
Não lhes ofereço a mão para
caminharmos por áureas alamedas, aplainadas com joias de pedrarias. Vou
conduzi-los aos trambolhões, em veredas repletas de torrões. Deixemos então de
lado os instrumentos mais delicados. Avancemos com o enxadão. Instruo-os a partir de experiências
hesitantes e não exitosas, de parcas e porcas leituras – Schopenhauer sugeria
moderar a leitura, para reservar tempo ao pensar; ironia do rabugento homem,
Schopenhauer muito leu e pensou. Está claro que não tenho nada de nobre a
oferecer. Assim, vou lhes distrair com o ordinário.
Crianças em flor e crianças já
adultas, notaram como o prato-feito do dia a dia está empapado pela pimenta da
baixa política? As gargantas de todos ardem, estão irritadas e rogam águas de
puras fontes. ...Oh! Eis-me desde já advertido pelo Mestre de Cerimônias.
Diz-me que não é momento. Para tais efemérides manda a etiqueta o discurso
laudatório, prenhe de hipérboles, bucho vazio de ideias. Não sabe que os altos
pensamentos nascem do comezinho? Há muito desenhei hipérboles para esta
ocasião. Receio que elas pouco lhes sirvam. Querem uma cerimônia de formatura,
mas hoje me disponho a partilhar com vocês uma festança de formação.
Sim, sim, sim! Os jovens aqui
presentes venceram, são guerreiros, heróis. À frente cavarão trincheiras, onde
da artilharia da vida abrigarão brilhantes carreiras. E já longe da infância,
devem avançar, como fazem as infantarias, em busca do bom emprego, trilhando o
caminho dourado da felicidade, protegidos das saraivadas do mundo. As analogias
com as guerras e o dourado do ouro caem bem nessas ocasiões. Nem bem comecei e
vejo pais emocionados, mães a molhar com lagrimas o cetim dos caros vestidos. ...O
Mestre de Cerimônias sorri. Mas, serei insultuoso com o protocolo. Permitam-me
– inquietos jovens e assustados pais – debutar em outros campos, beber de
outras fontes, aliviar os pés descalços em relvas mais férteis, embora nem
sempre de agradáveis aromas.
Prossigamos, então. As palavras
de baixo calão são incorruptíveis. Elas acompanham incólumes a marcha da
história humana. Com Darwin, lembro-lhes que as fendas, saliências e
excrecências do corpo pouco ou nada mudaram nos últimos milênios. Apesar de
tantos anúncios em contrário, e das variações de intensidade, os modos de se
obter prazer e comercializar o corpo também não. Daí a pouca novidade na arte
do palavrão. ...Ah, o Mestre de Cerimônias acena para mim. Tenha paciência,
senhor, ainda estou longe de concluir.
Jovens flertam divertidos com
sexo e escatologias. Com a política nem tanto, embora em certas ocasiões tais
práticas se confundam. ...Oh, Mestre, parece tão afoito! Falo só de corpo e de
coito. Advirto-a meiga senhora de crucifixo à mão: como na escatologia, a
política não deve aqui ser confundida como o fim do mundo. Mas deixemos de
circunlóquios, embora sempre convenientes em tão nobre ocasião. Vamos aos
fatos. Mesmo que certo sobre minha teoria da obscenidade, hoje conheci dois
novos xingamentos. A criatividade humana sempre a nos surpreender e a desatar
nós de amarradas teses.
Saí à tarde orgulhoso do sanatório – ainda os chamam
assim? –, vestindo um smoking antes caro, hoje carcomido. Eis que à luz do sol,
a voz das ruas de pronto taxou este então bem vestido homem: “Coxinha!”.
Cheguei aqui pedalando, já que uma bicicleta alheia me acenou, indicando uma
rara distração de seu dono. Ao deixar o selim, outra torrente de impropérios:
“Petralha!”. As ruas estão nervosas.
Smokings e bicicletas são belas peças da civilização. Alguns dizem que ambos
servem a princípios irreconciliáveis. Eu gosto dos dois inventos e alegre os
visto e pedalo, mesmo que carcomidos ou emprestados. Mas desconfio que os
insultos digam respeito a outras fendas que não as do corpo. São as gretas de
política.
É das práticas chãs que extraímos
os mais altos pensamentos. A vida é assim. Não é necessário, pois, senhores,
que enquanto nos fartarmos pela boca da boa mesa, pelas entranhas estejamos
elaborando um saudável bolo... fecal? ...Ai! Mestre, machuca-me com esses
cutucões! Feche a boca, espantada senhora à direita. Sim, a ceia e o bolo fecal
são partes de um todo, onde se unem o sublime e o ignóbil. O pensar tem muito
da fisiologia. Em ambos, tudo o que por cima entra, por baixo sai. Poupando-os
da fisiologia, no pensar, o que entra na mente sai de algum modo pela boca ou
pela pena. Para o mastigado e o pensado, o segredo está no bom filtrar e no bom
digerir. Saudável é o homem que regra o intestino. O segredo está em instruir
corretamente a mente e o apetite, em bem moderar a boca e as entranhas. ...Ai!
Atirou em mim um sapato, Mestre? Só porque troco as vossas excelências pelas
nossas excrecências? Ah, o Mestre é mais afeto às condolências...
Fujamos dos sapatos na cabeça e ponhamos os
pés no chão. O velho e o novo Órganon, o método cartesiano, o idealismo
kantiano, o materialismo dialético. Todos admiram e louvam os grandes homens e
suas grandes ideias. Eles mudaram o mundo. O grande Quincas Borba não assombrou
a todos com o Humanitismo? Mas, pode o homem rasteiro também conceber elevados
pensamentos? Raciocinar torto e ofertar ideias retas? Plantar sofismas e colher
verdades? Cuido que sim.
Há anos também cultivo e carrego
comigo um grande pensamento. Uma tese tão grandiosa como as que marcam à ferro
a história do conhecimento humano. É a idéia dos Seres Políticos! Conforme ao
longo de minha vida tenho observado de viés os homens, das amplas janelas do
sanatório, a falar com meus botões e a me conter à força em camisas, julgo
poder afirmar que eles se limitam a dois tipos: os Paralíticos e os
Transformistas! Não, pais abobalhados, não, meninos de riso ferino, não me
refiro de modo grosso aos que se equilibram em cadeiras de roda ou saltos
plataforma.
Os Paralíticos e os
Transformistas! Quanto aos primeiros, afirmo que os Paralíticos querem manter
as coisas como absolutamente estão, são conservadores. Penso que tenham por
perfeito o lugar onde vivem – logo, vejo com mais simpatia um paralítico na
Suécia do que na Eritreia. Um Paralítico só é justo mesmo na sociedade
perfeita, do mundo acabado. Ele se sustenta, portanto, nas brumas do quimérico.
No círculo do mal-acabado, na realidade descompassada do mundo, o Paralítico é
como o graveto em tempestade, a tentar barrar por si o oceânico rio. Pelas
esquadrias de meu mundo, vejo muitos Paralíticos a boiar como náufragos na
impetuosa existência das coisas. ...Ah!? O que tanto me cutuca, o que quer
agora o nosso ministro da ordem, pastor do solene, acabar com minha saúde? Mestre,
deixei o sanatório para aqui me enlouquecer?
Os segundos entes de minha
teoria, os Transformistas, são mais complexos, evidenciam múltiplas nuances,
motivo pelo qual me demandam maiores esforços de torto raciocínio e tola
demonstração. Ao meu modo estapafúrdio, esclareço-os. Não há no mundo
jardineiros de toda ordem? Algum de vocês já notou o cuidador de jardins que toca
com delicadeza os pés na grama e remove com pudor seletivo as ervas daninhas?
Possivelmente, os senhores observaram como este homem, resignado, ou encantado,
se molda à natureza das plantas e limita seu toque humano ao essencial da arte
do suprimir e do acrescer. As forças do mundo o dominam e o fascinam.
Mas há também aqueles cuidadores
de plantas que, inconformados com a natureza do jardim, arrancam os vegetais
desde a raiz e fazem da gleba terra arrasada. Não temem a terra nua, nem a
erosão do solo exposto ou de suas vontades e certezas. Querem erguer outro
jardim no local, diverso daquele que arrancaram com tanta gana. Concebem então
um paisagismo ideal, onde as pragas da natureza nascem mortas da raiz. Arvoram-se
a criar outras naturezas, são inconformistas e revolucionam a arte de fazer
jardins. A partir de seus ímpetos, muitos novos jardins florescem, outros se
eternizam murchos, uma vez que não tiveram o solo arado, fertilizado, regado.
Deste modo, os Paralíticos
nalgumas vezes concebem em pensamento exuberantes jardins, mas logo são sugados
pelas forças vitais da natureza. Os Transformistas podem cultivar formosos e
equilibrados jardins, ou tudo arrancar – a rústica praga ou a perfumada flor –,
deixando a terra esturricar a nu. Não é plausível viver o homem sem o tocar
humano na natureza, pois eles estão enredados numa coisa só; nem é possível o
viver do homem com o arrasar humano da natureza, pois eles estão emaranhados
numa vida mundana só. ...Ei, em tão distinto recinto, pode o Mestre puxar um paraninfo
a partir das pernas? Ei, Mestre, faça o favor de devolver-me o roto e brilhoso
sapato, ele pertence a meu colega de enfermaria. Sapatos e amantes só veem
razão para viver quando em pares; se não assim, os pares humanos sucumbem à
falta dos beijos e os sapatos cedem à tristeza, e se desbeiçam.
Já tive muitas precisões e
ocupações. E já me ocupei da jardinagem. Sei bem que fazer jardins envolve
remover sem descanso e com paciência as ervas daninhas da iniquidade. Sei bem que belos jardins pedem alguma regra e muita rega. Há muito
deixei os caprichos da profissão, mas julgo que não se cultivam jardins sem arregaçar
as mangas ou fazendo uso de retroescavadeiras. Por essas, não me aprazem
estagnações ou revoluções. Tenho mais gosto pelo seguro e constante civilizar.
...Oh, o Mestre Cerimonioso, em
sua nova investida banha-me com água fria! Onde arrumou os muitos e coloridos
baldes? Pois saiba que tanto me alegro com águas de baldes como de oceanos.
Encharca-me não só de água, mas também de novos ímpetos. Ah, atenta platéia,
bem reparando, já notaram como a humanidade se confunde com um grande oceano?
Visto das alturas, a incomensurável massa d’água é mansa, como o é um bovino.
Nada abala o imponente mar. E, se o olhamos distante, temos a calma certeza da
imutável condição. Mas, quando nos atrevemos a nele navegar, damos conta das
encrespações. Percebemos então seus movimentos, e notamos, com alegria ou
terror, que o bovino oceano pulsa e nos convida ao recrear ou ao
naufragar.
Reparem crianças, atentem
senhoras e senhores. A Força do grande mar avança e recua em ondas. Suave em
marola, agitado em vagalhões. Esse
movimento contínuo, a beijar delicado a areia da praia ou a desabar violento
sobre as escarpas, tem muito do viver humano.
Passo assim do oceano para a humanidade, e das ondas para as homens.
Percebam que há pessoas que levam a vida em marolas, outras que se arremetem em
vagalhões. Só navegando nos damos conta que é da natureza dos mares a ondulação,
fazendo-a em marolas ou vagalhões. Só vivendo intensamente atinamos que a
humanidade pulsa, em conservações ou revoluções.
O mar está neste momento
encrespado. Ressacas eleitorais e sopros malfazejos de iras políticas. Os
Paralíticos querem se deter nas calmarias, e lançam âncoras em águas profundas;
os Transformistas almejam velejar em brisas ou se perder nas tempestades. ...Oh,
Cesse o banhar, guarde os baldes senhor Mestre de muitas cerimônias, não
interponha grandes ondas ao meu navegar, o barco é cheio de furos e ainda nem à
praia cheguei.
Meninos, no ginásio,eu também
não apreciava os clássicos. Mas eles melhoraram bastante desde quando passei a
gostar deles. Acreditem, antes de frios bustos de bronze ou mármore a adornar
os jardins deste liceu – ainda os chamam assim? –, os grandes homens eram de
carne viva, e também eles se ressentiam das dores da carne e da alma. Grandes
homens, mas gente frágil como nós. Ocorre que lançaram anzóis em água mais
profundas, e trouxeram à superfície peixes de suculenta carne. Daí que... Ah, o
mestre arregimenta os músicos. Quer a orquestra em prontidão. As sinfônicas
alegram os salões, mas também à elas se dão serventias de abafar os maus ou os
belos raciocínios.
Inflamados pais, desejo a seus
infantes meninos um mundo onde impere o não muito nem o muito pouco. Nem a penúria nem a ostentação. Ainda que
nos excessos more a beleza do trágico, o humano só se afina com a natureza na
temperança. Já lhes expus à larga as ideias que me fincam ao sanatório. Aliás,
muitos debatem se manicômio é barbárie. É, mas visto de dentro, me deixem fora
desta.
Ei! À uma lufada do vento escapam
do púlpito minhas valorosas anotações. Ao ar tanta filosofia... Uma tragédia
para a humanidade, um alívio para a platéia ...Ah! Mestre, não aponte para cá o
ventilador. Mas também, convenhamos, já é o bastante, embora houvesse muito a
dizer. Se tenho muito a dizer é porque já disse o bastante. E pouco instrui. ...Oh!
A orquestra! Tem início uma linda valsa. Ravel! Choros! Os mestres de cerimônia
são todos mesmos uns paralíticos.
Saúdo a todos! Ergo a taça aos de
boa vontade! Atentos cavaleiros e damas aguardam o fim das palavras minhas:
querem bailar. Acordem os dispersos pais, arrebanhem os meninos sumidos. Entre
pulsos e repousos, definam vocês seus compassos. Os jovens em formação anseiam
pela dança. Deles o futuro tem fome. Tomem suas posições. Aproximem seus
corpos, enlacem as mãos. Conduzam os pés e as mentes num só e doce ritmo ...Mestre,
ousai comigo dançar. O baile da vida vai começar!
No mais, ouçam Rabelais, e “façam
como queiram”.
sexta-feira, 3 de junho de 2016
quinta-feira, 2 de junho de 2016
quarta-feira, 1 de junho de 2016
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