(Para garotinhos e garotinhas que vivem em cidades engolidoras de brejos)
Era uma rã, daquelas que não se veem mais nas bordas das cidades.
Rãs vivem em brejo, sem ele, somem. Não é, no
entanto, o caso da rã desta história.
Por mais que a cidade tivesse crescido,
estendido seus longos braços pelos campos, coberto terra e mata com asfalto,
lançado concreto onde havia relva e rio, a rã se mantinha impassível, em seu
canto.
Rãs impassíveis são aquelas que não se importam com
o que acontece à volta. E por mais que as coisas tenham acontecido naquele
lugar, a rã realmente parecia indiferente a tudo.
Antes que digam que isto é absurdo, que
animais não tem tal sentimento, é bom deixar claro: nesta história, rãs são
ranzinzas, ranhetas, rabugentas, mas também razoáveis, radiantes e sonhadoras,
como os humanos.
E a rã da qual aqui se fala era também
sonhadora. Indiferente e sonhadora.
Mas como pode bicho ser essas duas
coisas ao mesmo tempo? Ninguém sabe. As rãs são mesmo difíceis de entender. Se
não tem jeito de entender as rãs, entendamos ao menos o brejo.
Brejo não é lugar do gosto dos homens,
mas é muito apreciado pelas rãs, sapos, mosquitos, pernilongos, muriçocas,
cobras d’água e outros bichos.
Ao contrário das rãs e seus amigos, que
o tem como agradável, a maioria dos homens acha o brejo muito úmido, frio,
ventoso, barrento, mal-cheiroso. Brejo suja sapato e barra da calça. Não
permite piquenique. No brejo não dá para jogar bola nem peteca. Se fica parado,
afunda; se coloca banco, afunda; se passeia de carro...atola! Ai, que problema
é o brejo!
É por isto que rãs e homens não se
relacionam bem, rãs adoram brejo! Mosquitos não incomodam rã, pelo contrário,
enchem-lhe a barriga. Rãs só afundam no brejo se quiserem – e muitas vezes
querem. Como rã não usa sapato, não joga peteca ou futebol, muito menos tem
carro, para ela brejo é paraíso!
Vejam a que ponto chega a coisa: basta
dizer que quando algo dá errado, o homem fala “foi para o brejo!”. No caso da
rã, ir para o brejo quer dizer que tudo se passou às mil maravilhas.
Desta forma, era para as rãs ficarem na
sua - no brejo - e os homens longe dele. Mas não é isso que acontece.
Homens também são difíceis de entender.
Não gostam de brejo, mas o ocupam. Na verdade, ocupam para que ele deixe de ser
o que é.
Acham que para o brejo deixar de ser
brejo basta colocar em cima dele prédio, avenida, shopping center, viaduto e
outras tranqueiras feitas de concreto, asfalto ou aço.
Acontece que, tal como homens e rãs, os
brejos são teimosos. Eles ficam ali, quietinhos, fingindo ser cidade. Tão
sossegados que até os homens esquecem que estão sobre brejo.
Mas quando chove... dá enchente! Enchente é
sinal que a cidade ocupou lugar que não devia.
Brejos são amigos de córregos e rios.
São tão bons companheiros que os rios sempre visitam os brejos, ainda mais
quando chove. Lá os rios se amansam, ficam tranqüilos, chegam e saem de
mansinho. Não precisa ser rã para saber
disso.
Como os rios têm saudade dos brejos,
nas chuvas mais fortes eles os procuram, mesmo quando os brejos estão
disfarçados de cidade. Trazem até presente: adubo.
Rios, quando presos, apertados, ficam
inquietos, igual bicho e gente. Se a cidade aperta o rio, não sobra espaço para
ele abraçar o brejo. Aí, nervoso, o rio avança sobre a cidade, é enchente!
Então, o brejo que se pensava cidade
volta a ser brejo, só que com um montão de gente dentro. Gente e sujeira: pneu,
garrafa de Coca-Cola, chicletes, palito de dente, sofá velho, sofá novo,
televisão, tênis, papel higiênico, rato morto, rato vivo, xixi de rato... tudo
boiando.
Como as pessoas não se dão com essas
porcarias, ficam doentes. Doentes, com a casa cheia d’água e os móveis
estragados. Ninguém merece!
E o que tem nossa rã a ver com tudo
isso?
Diferente das outras, essa rã decidiu
ignorar o avanço da cidade. Ficou ali, impassível, ilhada (Neste caso, ilhada
não quer dizer envolta em água, mas isolada).
Cercada de asfalto, seu coaxar foi
abafado pelo ronco dos motores. Mas ela pouco se importava. Alheia ao
burburinho, fazia de conta que em seu brejo não tinha cidade. E sonhava com
água barrenta.
Pois água barrenta ela tinha nas
enchentes. Seu coração – na verdade, ela inteira - ficava aos saltos com as
chuvas fortes. E boiava fagueira naquela porcaria. Certas rãs são mesmo
difíceis de entender. E por acaso dá para entender os homens? Estão sempre
sonhando com um lugar perfeito para viver, mas fazem pouco de suas cidades.
E mesmo as rãs sonhadoras despertam. A nossa um dia
percebeu que construção em cima de brejo é uma coisa esquisita, pois na verdade
o lugar deixa de ser brejo, mas também não vira cidade. Estraga a vida das rãs
e não ajeita a dos homens.
Sonhadora,
porém já não indiferente, a rã decidiu viver com seus parentes. Mas para isto
teve de pular por mais de mil quilômetros. Porque os homens e suas cidades já
tinham engolido muitos, muitos brejos...
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