ATO 4 – O MORRER
(Catacumbas do Palácio,
descansa o gato e lá se embrenha o rato)
Rato
Uau! Afinal um animal para eu tratar de igual para igual.
Gato
Uau! Afinal um animal para eu tratar de igual para igual.
Gato
Aiiiiii! quem me finca os dentes?
Rato
Longe de mim tal ato vil, só o acariciei com afiados
dentes o gordo quadril.
Gato
Tentou me matar!
Rato
Não esqueça que sua vida se desdobra em mil.
Gato
Exagero seu, pois conto com apenas sete.
Rato
É o bastante para vocês gatos não nos darem sossego. Por
acaso doeu-lhe uma gentil mordidinha?
Gato
Para tanta dor nem se faz
preciso morte!
Rato
Teve é sorte, tanta sanha nossa troca por pequeno
corte.
Gato
Cortes faz em quem até então lhe era cortês.
Rato
Cortesia é o que mais ratinhas.
Gato
Ratinho sim terei por janta...
Rato
Sugiro desde já outra dieta
gordo gato, tenho por hábito não ser muito digestivo.
Gato
Guardo bem feitas receitas
de ratos.
Rato
Acuado, circundado por
perigosas presas, sugiro uma boa amizade à uma má digestão.
Gato
Com os ratos nós os gatos
queremos uma amizade encarniçada. De você tenho por ambição tão só a carne.
Rato
Escarnece dos ratos e
quer nos reduzir a ossos.
Gato
São-lhe os ossos do ofício
de uma natureza de rato.
Rato
Alimentar-se à custa de seu
interlocutor não é um ato civilizado.
Gato
Doravante, o devorarei com bons modos. Convenhamos que maus modos se sepultam à força do
bom apetite.
Rato
Moderar o apetite é de boa
etiqueta.
Gato
Com presa tão suculenta posso
fazer desta uma cerimônia lenta.
Rato
Gentileza sua, mas não estou para
a morte hoje.
Gato
Quem em vida a morte não
ronda?
Rato
Desejo morrer de morte vivida.
Gato
Morrerá de morte comida.
Rato
É sempre possível nos entendermos
já que a natureza não nos fez racionais. Deixemos aos homens os mal-entendidos
e os malquereres.
Gato
A evolução me fez gato e a
você rato. Nossos quereres são desiguais, és iguaria, eu apetite.
Rato
Quem diria, embora tão
distintos, o gato me tem por iguaria. Agradeço a corte, mas temo os cortes, as
feridas e a morte.
Gato
De fato, pretendo com minhas
garras desgarrar-lhe a vida.
Rato
Devo então com ágeis patas
fugir-lhe à corte. Oh, destino cruel! Um rato tão requintado, tão apurado...
Gato
Por apurado ser, em apuro
está.
Rato
Oh amarga covardia! Sete felinas
vidas contra um tão só indefeso rato. Você transita leve entre dois mundos e, eu da
vida só tenho de ir, em mão única, à morte.
Gato
Desta vida eu saio e
entro, saliento.
Rato
Nesta vida eu rato fico,
ratifico.
Gato
Poupe o alvoroço, adiar não adianta, se não és
almoço, és janta.
Rato
Quem esbanja vidas faz
pouco da morte. Eu cravo as garras na vida e ratinho morte.
Gato
Não seja avarento...
Rato
A morte enganou-se de
presa. Aquele que de sete vidas se farta que primeiro parta.
Gato
Gosto de economizar minhas
vidinhas. É hora de ter-lhe preso às minhas presas.
Rato
Sou presa, mas me quero livre.
Gato
Nas garras o gato lhe tem à
marra.
Rato
Folga-me ver eu solto.
Gato
Melhor avançarmos com
isto.
Rato
Nesses casos, sou mais o recuar que o avançar, o
adiar do que o antecipar.
Gato
Proponho um sincero abraço
e alguma carnificina.
Rato
Vontade sua comezinha comer-me crua carne
minha.
Gato
Não tenho asco de seu
corpo em churrasco. Se não cruas, caem-me bem as ossadas e as carnes bem
passadas.
Rato
Cruel assaz és, assas já o
rato sem ainda tocar-lhe fogo.
Gato
Cruel seria ao meu apetite
apreciá-lo tão só cru. Tanto alvoroço está a perturbar meu almoço. Seja
compreensivo.
Rato
Se cedo, vou-me daqui
morto cedo.
Gato
Por ser rato, devorar-lhe tenho sedes. És carnudo e saboroso.
Rato
Elogios rasgados de quem
rasgar meu lombo quer. Meus ossinhos preferem se manter grudados às carnes. Sirva-se
do banquete de suas muitas vidas e deixa eu roer a minhazinha.
Gato
Acha que tenho sorte? Não se dá conta que se numerosas vivências tenho, muitas mortes comigo levo? Em
vidas os gatos carregamos o peso da morte.
Minhas muitas vidas sustentam o fardo das minhas muitas mortes.
Rato
O bispo jura que com a
morte levamos nos ombros a carga da vida. Se assim, é nossa vida que dá o prumo
da morte. Daí o inferno e o céu, a glória e a desventura. Eu rato prefiro em
vida me lambuzar nos prazeres do corpo, deixando aos infelizes dos homens as
delícias da libertação da alma.
Gato
Vida e morte estão
visceralmente amarradas. O morrer só é dado a quem vive. Ninguém vivencia a
morte, se assim o diz é por que está vivo. A morte que conhecemos é o ato vivo
de morrer, sempre antes do último suspiro. Se há vida depois da morte, então
não é morte. Para além, só o “não ser”, o impenetrável. Alguns aplacam a dor da
existência aspirando ao além.
Rato
O gato quer me tirar a
vida e ofertar a morte. Se as duas estão visceralmente amarradas, que não seja
com minhas vísceras. Quando estou aqui presente é porque a morte aqui não está,
se ela se apresenta é porque eu deixei de me apresentar. Para os ratos é muito
simples: a morte não está onde estamos. No teatro da vida, se estou em cena,
ela não entra, se ela entra, eu já não estou.
Gato
Tanta barata filosofia é
perfeito mote para um fatal bote!
Rato
Ai, pego fui! Oh, morte doída! Às garras do
gato, carne-moída; à boca do gato, triste comida!
Gato
Para que tanto alvoroço,
só quero meu focinho colado em seu pescoço.
Rato
Entrementes, estou entre
dentes. Fala com a boca e me morde com os dentes.
Gato
Manterei a boca fechada,
ela desde já se cala.
Rato
Para ser sincero, folga-me
nesse instante que se abra comigo, a começar pela grande boca que me abocanha.
Gato
Sempre fui muito fechado,
começando da boca. Quando ela se abre, logo fecha, para depois se abrir, e
assim se vai a suceder. Chamam isto de mastigar. Fustigar e mastigar a presa é
um vício de minha natureza.
Rato
Em tremores e pálido,
sinto a morte eu seu hálito.
Gato
Meu hálito de morte vem de
quando fiz da morte um hábito.
Rato
Neste mundo em pouco não
mais habito, eis do rato o último ato por mau hábito de um gato.
Gato
Antes que com minha boca
sua morte eu gere, o já morto rato algo sugere?
Rato
Antes de morrer, só correr
me ocorre.
Gato
Pelos meus dentes sua pouca vida
escorre e nem mais as patas ágeis o socorre.
Rato
Minha vida falha... na
agonia, que me valha a fúria e a ironia.
Gato
Entretanto, está entre dentes.
Rato
Com cruel dentada no
lombo, ferido tombo.
Gato
Tenha sua situação como
abraços candentes de um amigo cheio de dentes.
Rato
Doravante, arrasto minha
dor avante.
Gato
Se o rato aquieta, ajuda
em muito minha dieta.
Rato
Se o gato o rato morde
talvez em demasia engorde.
Gato
Ah, rato de muita carne e
alguma fibra. Eu a encarniçar e tu a escarnecer.
Rato
Vou ao duelo com dentes e
ironia, doutro modo não iria.
Gato
Em derradeiro ato, vou com
tudo fazer-me gato sortudo.
Rato
Contudo, não lhe devo
nada.
Gato
Nada deve rico rato, mas
tem muito a pagar.
Rato
Em andrajos, ando e ajo.
Gato
Despe-se do arrojo e do
humor e sinto em teu bojo tão só temor.
Rato
É comum o medo me bater à
porta. Quando a bravura chega ao peito, logo no lombo o temor aporta. Fácil então
se corrói minha têmpera de herói e o rato em fuga medroso se porta.
Gato
É você sempre valente, mas
medroso de repente.
Rato
Sou fraco e sou valente,
do assim confuso eu abuso. Às vezes crédulo e sempre incoerente. Em minhas
fuças cabe tudo, nela transita o crente e o ateu, às vezes ambos, pois o
ambivalente é o jeito meu.
Gato
Certo neste mundo é que
será comido antes do primeiro gemido.
Rato
Quando assim premido, me
porto destemido.
Gato
Tanto assanho é porque
ainda não o arranho.
Rato
Um facínora a morte
fascina. Do fim do rato o gato faz sina.
Gato
A ideia de lhe devorar não
descarto e de sua conversa estou farto.
Rato
Oh, desta vida eu hoje
parto, de morte comida ou de infarto.
Gato
Tenho muita afeição por
minha refeição.
Rato
Seu apreço me cobra alto
preço.
Gato
É assim da natureza e não
porque eu queira, porqueira.
Rato
Ai, a natureza com presas foi
mais ágil que minha destreza.
Gato
Eis a hora temida minha adorável
comida.
Rato
Ah, antes corria eu risco,
agora sou petisco.
Gato
Diz o homem que quando se
morre voa dele a alma.
Rato
Creio que a vida finda e a
alma afunda.
Gato
Diz o homem que se a morte
vem nos sobra o além.
Rato
Se da terra vim, ela é meu
fim. Ela vindo o rato finda.
Gato
A morte transcende...
Rato
A mim transtorna...
Gato
Para que tanta teima, guloseima?
Deixa o gato se esbanjar com tão bom manjar.
Rato
Ah, desgosto, ao menos
saberei se a vida é tudo e a morte nada, ou de tudo isto o oposto. Pelo
malfeito do gato, doutro lado agora descanso em mau leito. A vida é dor, mas ao menos oferta o queijo.
Adeus!
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