domingo, 7 de abril de 2019

A filosofia dos ratos em quatro atos - Terceiro ato


ATO 3 – O CRER


(Claustro do Palácio, reza o bispo, daí surge o rato a escorregar em lustroso mármore)


Bispo
Enquanto concentrado oro, quem no casto altar adentra inquieto, a afrontar a calada do claustro?

Rato
Oh, se o bispo ora, o rato chega fora de hora.

Bispo
Fazer o bem requer rogar além. Como réu reze.

Rato
Obedeço e sigo, como as rezes!

Bispo
Obedeças e reze, assim terás o céu!

Rato
Posso resmungar algo para os altos, mas a reza não me tira as patas do chão, ato vão que não me oferta pão. Para ratos, a reza é luxo que não farta o bucho. Orar cansa e não nos enche a pança.

Bispo
Se tanto resmungas, não tiras da alma nada.

Rato
Só obedeço e sigo, tal manada. Em minha vida laica, tanto faz lá e cá.

Bispo
Então, não anseias céu?

Rato
Caminhos de rato são em terra firme, está abaixo de mim o que move e sustenta meu corpo e meu longo rabo.

Bispo
Eleva teu focinho ao céu e vê a luz.

Rato
Tenho certezas abaixo das patas, minhas verdades são chãs. São tão verdades que deixam rastros. Nada sei sobre o que reina acima das telhas e das minhas orelhas.

Bispo
Assim atolas na escuridão.

Rato
Pois é da natureza do rato a toca e o porão.

Bispo
Não tens fé? Sem ela tua vida é vã.

Rato
Minha vida é neste plano, meu rabo bem se arrasta na terra, não em nuvens. É no ato rasteiro que me elevo.

Bispo
Aspiremos àquilo que com a alma vemos.

Rato
Clamo o quê com os intestinos chamo.

Bispo
Anseios da alma cá nos acalmam.

Rato
Não almejo alma pura quando chafurdo meu corpo roto em esgoto. Insisto que a vida reta e os altos planos de nada me servem, pois vivo do esgueirar e do rastejar.

Bispo
Meu ofício trata do mundo acima das nossas cabeças.

Rato
Meu focinho fareja o bom queijo aqui, não em outros domínios.

Bispo
Reflita e cure tua vida aflita.

Rato
Antes encher o bucho, depois pensar é luxo.

Bispo
Deste modo, o azar é só teu rato ateu. O que tens contra o sagrado?

Rato
Um leve desagrado.

Bispo
Acompanhe-me nesta jornada.  Quer a humana alma ascender ao céu.

Rato
As crenças do homem mal o sustentam no ar, almejam o céu e na terra batalham com fúria e fé espúria.

Bispo
Pode parecer doentio, mas um pouco de ferro e fogo usamos para animar o gentio.

Rato
Apavora-me o ferro e o fogo, o berro e o logro. Para me ver salvo, creio então nos céus, vejo duendes, sei das fadas, crente sou se não a vida ceifada.

Bispo
Ao céu se eleva quem o sofrer releva.

Rato
Mas assim como no céu o arcanjo, aqui ao solo ao meu modo me arranjo.

Bispo
Acenda velas, reza e vela que a ti a verdade se revela.

Rato
A vida quem me dita é a desdita.

Bispo
Pesa-nos nos ombros um mundo de assombros.

Rato
Em meus ombros um tanto de calombos.

Bispo
Vivemos aos tombos. Somos grão, pó, motivo de divino perdão e dó.

Rato
Se a vida não nos presta, o que fazer nos resta?

Bispo
A priori, ore.

Rato
Ainda que reze até me ter rouco, não te parece pouco?




Bispo
Escravos somos do destino divino, o céu é nosso bom guia. Cuidemos de esperar o chamado, ouçamos os badalos que anunciam o verdadeiro viver.

Rato
Triste sina de quem se molda a sinos. Assaz sinos badalassem e abalassem os loucos e os assassinos.

Bispo
A sorte anda abraçada à morte. Amemos o triste destino dado e o que há do outro lado.

Rato
Amor fati é o que no peito do rato arde. A vida fascina quem da coragem faz sina.

Bispo
Flertas com o abismo.

Rato
Ao inferno desce quem só obedece.

Bispo
Tens a alma perdida.

Rato
Ah, é que eu me acho é na perdição.

Bispo
Guarda-te para a outra vida. Depois que tu apagas é que vêm as pagas.

Rato
Ando a torto e paro quando morto. Estranho quem pensa que depois há recompensa. Findo
com meu bucho e não espero outro luxo.

Bispo
Tudo isto irás esquecer, com tais blasfêmias não posso aquiescer.

Rato
O mundo é o agora, dele nada levamos embora. Aqui ser, aqui esquecer.

Bispo
Estás à mercê dos juízos eternos.

Rato
Vejo-me agora sob os caprichos de teus julgamentos sumários.

Bispo
Longe de mim a perfídia. Sempre vivi para as igrejas e as cúrias.

Rato
Melhor te dás com as pelejas e as incúrias.

Bispo
Alguma vez maculei essa abadia?

Rato
Dia a dia.

Bispo
Porventura nela semeei insensatez?

Rato
Mês a mês.

Bispo
Por acaso nela fui leviano?

Rato
Ano a ano.

Bispo
Oh, blasfêmias, minhas premissas estão pregadas em missas.

Rato
Das agruras do mundo ergues teu próprio rico altar.

Bispo
O vinho, a prata... por louvar o céu minha vida é farta.

Rato
Tu que tanto amealha, amai o diabo que te valha.

Bispo
Muito valho pelo pouco que amealho. Sou bispo probo e almejo a paz no globo.

Rato
Quem tanto promete paz antes muita guerra faz.

Bispo
Oh! Causa-me tanta dor... e esse odor?

Rato
Pum, tão só um, a sotavento, sem maiores estragos para este imenso convento.


Bispo
Ó céu! O que deste templo fazes?

Rato
Se rezas fazes, eu gases...

Bispo
Maculas o lustro deste palácio. Se assim pecas, para mim confessa, que vida tua é essa?

Rato
Os ratos não se revelam, seus muitos pecados capitais lhes são interiores.

Bispo
Então a justiça te virá do alto.

Rato
Do céu que desça o raio que te parta!

Bispo
Perdeste o rumo.

Rato
Meus rastreios são por caminhos tortos feios.

Bispo
Velas acenda e ascenda aos céus.

Rato
Minhas escaladas são como o voo trôpego da galinha. Se voo acima, logo venho abaixo.

Bispo
Erguei robustas pontes para outros horizontes.

Rato
Tomo rumo por trilhas frágeis, sempre a fugir com patas ágeis.

Bispo
Havemos de cravar-te no peito a fé.

Rato
Os dentes cravo em quem me faz escravo.

Bispo
Ai, rato pagão, tuas presas em minha canela tascas e tiras de mim lascas.

Rato
Fica com as belezas de teus ideais e eu com as misérias das minhas matérias.

Bispo
Ainda que mancando, desfilo neste claustro toda minha importância.

Rato
E fujo eu, arrastando daqui minha insignificância. Pensar e danar-se, achar e perder-se, isto é, enfim, o humano e o roedor viver.

Bispo
Tu és a semente de uma serpente.

Rato
Semeio tempestades em meio às vossas majestades.

Bispo
Ei de te dar ao céu ou vender-te ao inferno.

Rato
À terra preso, a vida prezo.

Bispo
Preso estarás, pois meu cativo.

Rato
Ai de mim, que bispo cativante, eu tão ínfimo, ele tão infame.

Bispo
Estás em pecado afogado, seja como eu ilibado.

Rato
É pelos puros que nos vêm os apuros.


Bispo
Todo gozo é perigoso.

Rato
Lê Spinoza e a vida goza.

Bispo
Deus Pai...

Rato
Deus sive natura, porque teu Deus Pai ninguém mais atura.

Bispo
Leva tua heresia para outra freguesia.

Rato
Como em cortejos, arrastas conosco teus desejos.

Bispo
Sou bispo e disso me dispo.

Rato
Despido é quando mais se deseja. Todo conter é o mundo perder.

Bispo
Na fé me acoberto.

Rato
Viva a vida a céu aberto e pensa que viver não tem jeito certo.

Bispo
É com o acertado que se mata o errado.

Rato
A vida pouco dura e tua cabeça é dura.

Bispo
Assim resoluto te tornarei impoluto.

Rato
Impões tu luto para que eu impoluto.

Bispo
É uma dádiva.

Rato
Fico mais com meus gracejos do que com tuas graças.

Bispo
Atenta para o idílio.

Rato
Atento para um idiota.

Bispo
Aguarda humilde a outra boa vida.

Rato
Neste mundo, só lutar é salutar.

Bispo
Ousas escapulir de minha boa mão, paspalhão?

Rato
Com paspalho pavor.

Bispo
De fato, corres como um paspalho por este assoalho. Acaso mereço teu descaso?

Rato
Quem me impõe abraço com uma mão afaga, noutra uma adaga empunha.

Bispo
Oh, por que sobre adagas agora indagas?

Rato
É meu jeito terno de te dizer que não quero céu ou inferno.

Bispo
Sejamos corteses uma vez que falamos de deuses.

Rato
Corro de teus deuses corteses, da tua fé dou no pé. Antes minha vida fétida à tua dita fé.

Bispo
Volte rato ateu.

Rato
Sou rato da vida, não teu. Adeus.

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