ATO 3 – O CRER
(Claustro do Palácio, reza o bispo, daí surge o rato a escorregar em lustroso mármore)
Bispo
Enquanto concentrado oro,
quem no casto altar adentra inquieto, a afrontar a calada do claustro?
Rato
Oh, se o bispo ora, o rato
chega fora de hora.
Bispo
Fazer o bem requer rogar
além. Como réu reze.
Rato
Obedeço e sigo, como as
rezes!
Bispo
Obedeças e reze, assim
terás o céu!
Rato
Posso resmungar algo para
os altos, mas a reza não me tira as patas do chão, ato vão que não me oferta
pão. Para ratos, a reza é luxo que não farta o bucho. Orar cansa e não nos
enche a pança.
Bispo
Se tanto resmungas, não
tiras da alma nada.
Rato
Só obedeço e sigo, tal
manada. Em minha vida laica, tanto faz lá e cá.
Bispo
Então, não anseias céu?
Rato
Caminhos de rato são em terra
firme, está abaixo de mim o que move e sustenta meu corpo e meu longo rabo.
Bispo
Eleva teu focinho ao céu e
vê a luz.
Rato
Tenho certezas abaixo das
patas, minhas verdades são chãs. São tão verdades que deixam rastros. Nada sei
sobre o que reina acima das telhas e das minhas orelhas.
Bispo
Assim atolas na escuridão.
Rato
Pois é da natureza do rato
a toca e o porão.
Bispo
Não tens fé? Sem ela tua
vida é vã.
Rato
Minha vida é neste plano,
meu rabo bem se arrasta na terra, não em nuvens. É no ato rasteiro que me
elevo.
Bispo
Aspiremos àquilo que com a
alma vemos.
Rato
Clamo o quê com os
intestinos chamo.
Bispo
Anseios da alma cá nos acalmam.
Rato
Não almejo alma pura
quando chafurdo meu corpo roto em esgoto. Insisto que a vida reta e os altos
planos de nada me servem, pois vivo do esgueirar e do rastejar.
Bispo
Meu ofício trata do mundo
acima das nossas cabeças.
Rato
Meu focinho fareja o bom
queijo aqui, não em outros domínios.
Bispo
Reflita e cure tua vida
aflita.
Rato
Antes encher o bucho,
depois pensar é luxo.
Bispo
Deste modo, o azar é só
teu rato ateu. O que tens contra o sagrado?
Rato
Um leve desagrado.
Bispo
Acompanhe-me nesta
jornada. Quer a humana alma ascender ao
céu.
Rato
As crenças do homem mal o
sustentam no ar, almejam o céu e na terra batalham com fúria e fé espúria.
Bispo
Pode parecer doentio, mas
um pouco de ferro e fogo usamos para animar o gentio.
Rato
Apavora-me o ferro e o
fogo, o berro e o logro. Para me ver salvo, creio então nos céus, vejo duendes,
sei das fadas, crente sou se não a vida ceifada.
Bispo
Ao céu se eleva quem o
sofrer releva.
Rato
Mas assim como no céu o
arcanjo, aqui ao solo ao meu modo me arranjo.
Bispo
Acenda velas, reza e vela
que a ti a verdade se revela.
Rato
A vida quem me dita é a
desdita.
Bispo
Pesa-nos nos ombros um
mundo de assombros.
Rato
Em meus ombros um tanto de
calombos.
Bispo
Vivemos aos tombos. Somos
grão, pó, motivo de divino perdão e dó.
Rato
Se a vida não nos presta,
o que fazer nos resta?
Bispo
A priori, ore.
Rato
Bispo
Escravos somos do destino
divino, o céu é nosso bom guia. Cuidemos de esperar o chamado, ouçamos os
badalos que anunciam o verdadeiro viver.
Rato
Triste sina de quem se
molda a sinos. Assaz sinos badalassem e abalassem os loucos e os assassinos.
Bispo
A sorte anda abraçada à
morte. Amemos o triste destino dado e o que há do outro lado.
Rato
Amor fati é o que no peito do rato arde. A vida
fascina quem da coragem faz sina.
Bispo
Flertas com o abismo.
Rato
Ao inferno desce quem só
obedece.
Bispo
Tens a alma perdida.
Rato
Ah, é que eu me acho é
na perdição.
Bispo
Guarda-te para a outra
vida. Depois que tu apagas é que vêm as pagas.
Rato
Ando a torto e paro quando
morto. Estranho quem pensa que depois há recompensa. Findo
com meu bucho e não espero
outro luxo.
Bispo
Tudo isto irás esquecer, com
tais blasfêmias não posso aquiescer.
Rato
O mundo é o agora, dele
nada levamos embora. Aqui ser, aqui esquecer.
Bispo
Estás à mercê dos juízos
eternos.
Rato
Vejo-me agora sob os
caprichos de teus julgamentos sumários.
Bispo
Longe de mim a perfídia.
Sempre vivi para as igrejas e as cúrias.
Rato
Melhor te dás com as
pelejas e as incúrias.
Bispo
Alguma vez maculei essa
abadia?
Rato
Dia a dia.
Bispo
Porventura nela semeei
insensatez?
Rato
Mês a mês.
Bispo
Por acaso nela fui
leviano?
Rato
Ano a ano.
Bispo
Oh, blasfêmias, minhas
premissas estão pregadas em missas.
Rato
Das agruras do mundo
ergues teu próprio rico altar.
Bispo
O vinho, a prata... por
louvar o céu minha vida é farta.
Rato
Tu que tanto amealha, amai
o diabo que te valha.
Bispo
Muito valho pelo pouco que
amealho. Sou bispo probo e almejo a paz no globo.
Rato
Quem tanto promete paz
antes muita guerra faz.
Bispo
Oh! Causa-me tanta dor...
e esse odor?
Rato
Bispo
Ó céu! O que deste templo
fazes?
Rato
Se rezas fazes, eu
gases...
Bispo
Maculas o lustro deste
palácio. Se assim pecas, para mim confessa, que vida tua é essa?
Rato
Os ratos não se revelam,
seus muitos pecados capitais lhes são interiores.
Bispo
Então a justiça te virá do
alto.
Rato
Do céu que desça o raio
que te parta!
Bispo
Perdeste o rumo.
Rato
Meus rastreios são por
caminhos tortos feios.
Bispo
Velas acenda e ascenda aos
céus.
Rato
Minhas escaladas são como
o voo trôpego da galinha. Se voo acima, logo venho abaixo.
Bispo
Erguei robustas pontes
para outros horizontes.
Rato
Tomo rumo por trilhas
frágeis, sempre a fugir com patas ágeis.
Bispo
Havemos de cravar-te no
peito a fé.
Rato
Os dentes cravo em quem me
faz escravo.
Bispo
Ai, rato pagão, tuas
presas em minha canela tascas e tiras de mim lascas.
Rato
Fica com as belezas de
teus ideais e eu com as misérias das minhas matérias.
Bispo
Ainda que mancando,
desfilo neste claustro toda minha importância.
Rato
E fujo eu, arrastando
daqui minha insignificância. Pensar e danar-se, achar e perder-se, isto é,
enfim, o humano e o roedor viver.
Bispo
Tu és a semente de uma
serpente.
Rato
Semeio tempestades em meio
às vossas majestades.
Bispo
Ei de te dar ao céu
ou vender-te ao inferno.
Rato
À terra preso, a vida
prezo.
Bispo
Preso estarás, pois meu
cativo.
Rato
Ai de mim, que bispo
cativante, eu tão ínfimo, ele tão infame.
Bispo
Estás em pecado afogado,
seja como eu ilibado.
Rato
Bispo
Todo gozo é perigoso.
Rato
Lê Spinoza e a vida goza.
Bispo
Deus Pai...
Rato
Deus sive natura, porque teu
Deus Pai ninguém mais atura.
Bispo
Leva tua heresia para
outra freguesia.
Rato
Como em cortejos, arrastas
conosco teus desejos.
Bispo
Sou bispo e disso me
dispo.
Rato
Despido é quando mais se
deseja. Todo conter é o mundo perder.
Bispo
Na fé me acoberto.
Rato
Viva a vida a céu aberto e
pensa que viver não tem jeito certo.
Bispo
É com o acertado que se
mata o errado.
Rato
A vida pouco dura e tua
cabeça é dura.
Bispo
Assim resoluto te tornarei
impoluto.
Rato
Impões tu luto para que eu
impoluto.
Bispo
É uma dádiva.
Rato
Fico mais com meus
gracejos do que com tuas graças.
Bispo
Atenta para o idílio.
Rato
Atento para um idiota.
Bispo
Aguarda humilde a outra boa
vida.
Rato
Neste mundo, só lutar é
salutar.
Bispo
Ousas escapulir de minha
boa mão, paspalhão?
Rato
Com paspalho pavor.
Bispo
De fato, corres como um
paspalho por este assoalho. Acaso mereço teu descaso?
Rato
Quem me impõe abraço com
uma mão afaga, noutra uma adaga empunha.
Bispo
Oh, por que sobre adagas
agora indagas?
Rato
É meu jeito terno de te
dizer que não quero céu ou inferno.
Bispo
Sejamos corteses uma vez
que falamos de deuses.
Rato
Corro de teus deuses
corteses, da tua fé dou no pé. Antes minha vida fétida à tua dita fé.
Bispo
Volte rato ateu.
Rato
Sou rato da vida, não teu.
Adeus.
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