(Salão Real do Palácio,
ceia o rei e entra o rato)
Rei
Aiii! Quem do chão ousa os
dentes calcar em meus calcanhares nobres?
Rato
Eis-me aqui abaixo, de
súbito, seu faminto súdito!
Rei
Assim, de assalto, põe-me
os pelos eriçados e a real guarda em salto.
Rato
Para rei pouco estimado o
leve triscar em mim supõe motim?
Rei
Conservadores, conservamo-nos
nós os reis. Quem em trono se faz sentado teme sempre um levante. Corres do rei
envolta a fim de uma revolta?
Rato
Mais tremo que tramo. Motim
nada, almejo só queijo, não vossa botinada.
Rei
Tarde chegas, bem ceei como um rei!
Rato
Sei eu bem, pois como sempre
as migalhas do rei!
Rei
Comes migalhas, asqueroso
ser?
Rato
As disputo com mil gralhas
é forçoso crer.
Rei
Se assim no passado foi,
assim sempre há de ser!
Rato
E assim, julgais vós,
amanhã também se dará.
Rei
Se hoje é, noutro dia
será!
Rato
Ontem foi,
sei que hoje continua sendo, mas, amanhã? Não sei, fico devendo!
Rei
Alto lá, pões à boca só
migalhas, doutro modo me atrapalhas!
Rato
Além do queijo, palavra é
o que me toca, se não assim, volto à toca!
Rei
Tocar-te à toca só posso
eu.
Rato
Toco-me à toca e lá me
tocaio!
Rei
Nem mais um passo, eu rei
contigo posso!
Rato
Uhmm, sei quando a coisa
fica séria. Roga então o rato um reles rastejo.
Rei
Nem mais um passo, se a
palavra calo, ainda mais a vida casso!
Rato
É-me suficiente o gato que
a mim caça, ao rei a palavra passo!
Rei
Negando-te banquetes e mil
orações, concedo-te migalhas e algumas poucas palavras falhas!
Rato
Pouco me adiantam as
palavras se tenho presas as patas e esganada a garganta.
Rei
Roedor, seja por demais
comedido, se não assim, na ratoeira acabas.
Rato
Como me dito, serei comedido,
desde já ratinho palavras e com cuidado formo cada oração, como o avarento se
faz rico a cada tostão.
Rei
Gastas o pouco da sorte
que tens, perdulário rato! Guardas à boca só besteira.
Rato
Acaso não gaguejo coisa
verdadeira?
Rei
Verdade que te faz irmão da
temida ratoeira.
Rato
Dispenso o fatal
parentesco. O que dos ratos se diz não é o que penso.
Rei
A dar-te cabo estou assim propenso.
Rato
É de pouco custo ser com
rato tão moderado justo.
Rei
O fio da espada é a
verdade ao qual me fio. Até o servo que me serve sabe que não tolero desafio. Assim,
sem hesitar, êxito sempre logrei no meu reinar!
Rato
É voz corrente o logro,
diz-se pouco do êxito.
Rei
Meu governo é tido por
ímpio e discreto.
Rato
Longe deste rato pensar
que vosso reinado se faz pelo roubar e pelo ladrar.
Rei
Almejo reinar tomado nos
braços do povo.
Rato
Periga é do povo tomares
tomates.
Rei
Aspiro tão só o povo em
meus braços.
Rato
Braços que abraçam como
urso.
Rei
Farei disto um belo
discurso.
Rato
Com palavras fiadas em fio
de espada, o rei quer é à nossa vida dar curso.
Rei
Economiza palavras, rato
pobre e insolente!
Rato
Rei rico e insolvente, ocultais
fraquezas esbanjando riquezas.
Rei
Com bravura ergo impérios.
Rato
Não se constroem impérios
lançando impropérios!
Rei
Mas imponho medos com tais
arremedos.
Rato
És com a corte perdulário,
mas para a plebe ratinhas salário.
Rei
Muito prezo o erário. A
todos quero bem e do povo sou refém. Nunca fui vil com quem me é servil.
Rato
Vê-se pelas finas vestes
da rainha e pela rota roupa da criada. Vê-se pela seda do nobre e pelos trapos
do pobre.
Rei
Devo admitir que muito me
custa a vetusta rainha, mas o tesouro também muito serve à humilde serva.
Rato
Mas quem convosco barganha
muito apanha e nada ganha.
Rei
Enganas tu, pequeno rato.
Rato
Imenso rei, esganais vós
quem a vós não vos é grato. Enganais e esganais. Vossos sábios portam mentiras
nos lábios, vossos soldados à força nos levam à forca.
Rei
O poder manda ser
arbitrário com quem nos é contrário. Mas me contenho, aos inimigos já basta a
lei, assim sempre pensei. Um rei sábio as glórias propaga, as perdições as
esconde por paga. Um rei culto os erros com acerto mantêm ocultos.
Rato
O mau ato não se torna
menos vil tão só porque ninguém o viu.
Rei
Mas as vilezas do mundo se
encobrem com o metal vil.
Rato
Não vos importa as agruras
do povo?
Rei
As lágrimas me escorrem de
montão!
Rato
Lágrimas de crocodilo
brotam de um escorpião.
Rei
Pareces nada compreender
sobre as forças e as forcas. O poder tudo permite, com poder sou absoluto.
Rato
E deixa muita viúva em
luto.
Rei
Não se pode agradar gregos
e troianos.
Rato
Nem ratos, nem humanos.
Rei
Cala-te, bicho falante!
Dai-me sossego de teus lamentos, rei sou assoberbado.
Rato
E eu por vosso ato um rato
apurado. Porque alçais da coroa acima essa vassoura?
Rei
Me armo contra ratos e
ameaças mouras.
Rato
Baixais à poeira do chão o
que vós ao céu fazeis arma, pois é vosso palácio que requer faxina, não o rato
tão ignóbil sina.
Rei
És um roedor em más
circunstâncias. Largo da vassoura o cabo e tua vida com as mãos dou cabo.
Rato
Aiii!!! Sou um rato
apurado em apuros, um roedor que já sente dor e tem a vida em desapego sem nem ainda
o pescoço pego.
Rei
Ah, eis-te em minhas mãos.
Vê rato como posso ser cruel?
Rato
Como um monstro assim
demonstra.
Rei
Como de meu reinar duvidar
ousas?
Rato
Vossas fortes mãos sobre
meu pescoço pousam. Sinto o poder até não mais poder. Oh, por tão pequena falta
o ar agora me falta! Tão preso estou em vossas mãos que só o ar me escapa.
Rei
Minha causa é justa!
Rato
Deveras justa é vossa mão
que laceia o pescoço meu. Por causa de tanta justeza minha garganta roga piedade
a vossa alteza.
Rei
Como conceder clemência a
quem não mostra decência? Como ousas de repente a tanto poder fazer frente?
Rato
Todos que vos fizeram
frente sucumbiram às vossas costas. Sumiram todos em longos calvários, à mercê
de vossos julgamentos sumários.
Rei
Folgas ver-me como salafrário,
por isso agora lhe tenho tanto apego.
Rato
Nada mais falso Majestade.
Tanto que peço o desapego de vossas mãos de meu pescoço.
Rei
Sentis agora a força real?
Rato
Bem real esses dedos
grandes... São duas manzorras a esganar um singelo pescocinho. Atiras com
mosquetão mirando um mosquitinho.
Rei
Para tanto ardil nunca é
pouco um fuzil.
Rato
Majestade, minha vida me é
um tanto cara para findar com carabina.
Quanto ao meu aperto, folgai vossos muitos dedos para que eu também folgue meus muitos medos.
Quanto ao meu aperto, folgai vossos muitos dedos para que eu também folgue meus muitos medos.
Rei
Tua sorte com a morte
esbarra.
Rato
Esbarro esbaforido na dor
e rogo a Vossa Alteza mais sutileza.
Rei
De tua toca, tocas fogo em
meu trono. Aspiras poder inspirando o povo à revolução?
Rato
Sou louco o bastante
comigo mesmo para sê-lo com os outros.
Rei
Aos tantos revoltosos,
minha muita cavalaria.
Rato
Fujo de ambos, da foice e
do coice.
Rei
Tramas...
Rato
O caminho do trono é muito
longo para um simples camundongo. Fico no roer do queijo enquanto hordas
devoram vosso império pelas bordas.
Rei
És devoto do nobre queijo.
Seu estômago prega a revolução.
Rato
Meu estômago plebeu ronca,
mas ele só pleiteia digestão.
Rei
Gordo estás, em meu reino
chafurdas tu em engordas e engodos.
Rato
Tem fome quem não come.
Aliás, minto, não tenho fome, estou faminto.
Rei
Meu palpite é que a fome
só desperta mais apetite. Tua penúria é uma afronta à minha luxúria. Nestes
casos, me escudo aplicando-te um bom cascudo.
Rato
Oh, mundo estranho, não só
me bate a fome, mas do rei também apanho.
Rei
O rei logras...
Rato
Se alguém engano, logo
logro, mas não o rei, neste ostentoso
palácio. Só logro entre os meus, em logradouros.
Rei
Oh, eterna injustiça, ao
rato e ao aldeão sempre ofertei meu coração.
Rato
À corte sois cortês, ao
centro sois rei atento, mas às periferias ofertais tão só patifarias.
Rei
Reconheço que para mais
longinho a pesada mão do rei pousa em quem abusado ousa.
Rato
Pousa o rei cada vez mais
longinho... conquistais terras de modo aterrador.
Rei
Ainda que distante, clama
o povo ao rei que ama.
Rato
Ode a um bode...
Rei
Um bode que tudo pode.
Rato
Gentilezas do assustado
gentio não lhe poupa o ato vil.
Rei
As palmas tão só louvam
reis de boas almas.
Rato
Boa alma oculta em espírito
de porco. Acena-lhes com as palmas das mãos e chuta-lhes com as plantas dos
pés.
Rei
Poder é um grato ofício no
qual se combinam o tolher e o ceder.
Rato
O rei mais tolhe e o povo mais
cede.
Rei
Não me furto a servir o
povo.
Rato
Não vos furtais aos roubos,
com arroubos furtais.
Rei
Chafurdo para erguer aos
céus um império. Amealho poder de migalha em migalha.
Rato
Para tanto, tens a fina
espada e o gordo tributo. Miras migalhas e fomentas fome.
Rei
É parte do jogo bruto, o
roubar e o tributo.
Rato
Tomas brutalidade por
atributo
Rei
Oh, Expresso meu mau pela
ponta do punhal.
Rato
O ódio é sórdida chama que
a tirania só inflama.
Rei
A fúria e as tramas são
minhas chamas.
Rato
O rei teima e nos queima. Que
tal algo análogo a um diálogo?
Rei
Indago melhor com a adaga.
Sinto cheiro de rebelião. Confessas rato que há anos acalentas planos.
Rato
Meus intentos são
intestinos, eles se calam com um queijinho.
Rei
Como ousas fugir à mão
real que em ti pousa?
Rato
Louvo à vontade vossa
majestade, mas a vida me é grande coisa. A vida do rato simplória, a vida do
rei em glória.
Rei
Ah, amo tanto os louros
como os tesouros. Ao povo, vida simplória, ao rei, a glória.
Rato
O erário é refém de um rei
temerário.
Rei
Seu mal falar traz de
volta sinais de uma revolta.
Rato
O motim não nasce em mim.
O povo se inflama se falo ou se me calo.
Rei
Ainda que assim, depois de
uma revolta o rei sempre volta.
Rato
Os atos com que vós os ratos
punem tanto mais os ratos unem.
Rei
Para cada revoltoso sempre
acho um capacho. Caminham em cortejos à sombra de meus bafejos.
Rato
Sob seus sopros, as gentes
sempre ao vento, sem provento. O povo até sonha, mas logo desperta com vossa
peçonha.
Rei
É da natureza das coisas que
cada vez mais imposto eu cobre, do pobre, não do nobre.
Rato
Por mais que nos espete, não
tenha por natural tudo aquilo que se repete.
Rei
Confronto a traição com
pétrea tradição. Os inimigos cerco, ao povo circo. Os rivais que sigam em fuga
coxos com os olhos roxos. No que mais resta, tudo é festa: confetes cobrem
bofetes, flores ornam dores.
Rato
É o carnaval encarnando o
mal.
Rei
Um tanto de mal creio
normal. Meus críticos me julgam por motivos políticos. Só porque sob meu poder
quero todo o mundo conter. Há os que têm fascínio por meus domínios.
Rato
De outras bandas nada
quero. Tudo que está em outra calçada não é de minha alçada. Toleras partilhar
com o rato o mesmo lar?
Rei
Contanto que eu tenha
tudo.
Rato
Contudo, não divides nada.
Rei
Nem tudo subtraí do povo.
Rato
A outra parcela o delfim
deu fim.
Rei
Em meu seio muitos
anseios. Nada cobiças?
Rato
O que me move é estar
quietinho. Minha única cobiça é encher linguiça.
Rei
Ora, tu tão pirralho e
tanto pirraceias.
Rato
E vós um tanto negaceias e
muito me negais ceias.
Rei
Tuas más rimas reprimas. Estou
farto de injúrias, elas assanham minhas fúrias. Guardas!
Rato
Mais a queijos sou dado do
que a seus soldados.
Rei
Se singras entre o povo,
sangraras perante o rei.
Rato
Súbito, eis eu um rato em
decúbito.
Rei
Confessa e tuas palavras
meça. Ei de escovar o rato a contrapelo. Eis o meu carinho, para tanto o
pelourinho.
Rato
Nego o escovar para o rei
não me encovar.
Rei
Ei, volta cá rato, larga
as porcas rimas, vem sucumbir ao meu ato.
Rato
Tendes vós por divertido
meu sangue vertido.
Rei
Retorna cá figura dentuça.
Rato
Nem que a vaca tussa.
Abaixo de seu imenso nariz, ergo solene minha humilde fuça. Vou-me daqui embora
e que o povo faça sua hora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário