sábado, 2 de março de 2019

A filosofia dos ratos em quatro atos - primeiro ato




ATO 1 – O PODER

(Salão Real do Palácio, ceia o rei e entra o rato)


Rei
Aiii! Quem do chão ousa os dentes calcar em meus calcanhares nobres?

Rato
Eis-me aqui abaixo, de súbito, seu faminto súdito!

Rei
Assim, de assalto, põe-me os pelos eriçados e a real guarda em salto.

Rato
Para rei pouco estimado o leve triscar em mim supõe motim?

Rei
Conservadores, conservamo-nos nós os reis. Quem em trono se faz sentado teme sempre um levante. Corres do rei envolta a fim de uma revolta?

Rato
Mais tremo que tramo. Motim nada, almejo só queijo, não vossa botinada.

Rei
Tarde chegas, bem ceei como um rei!

Rato
Sei eu bem, pois como sempre as migalhas do rei!

Rei
Comes migalhas, asqueroso ser?

Rato
As disputo com mil gralhas é forçoso crer.

Rei
Se assim no passado foi, assim sempre há de ser!

Rato
E assim, julgais vós, amanhã também se dará.

Rei
Se hoje é, noutro dia será!

Rato
Ontem foi, sei que hoje continua sendo, mas, amanhã? Não sei, fico devendo!

Rei
Alto lá, pões à boca só migalhas, doutro modo me atrapalhas!

Rato
Além do queijo, palavra é o que me toca, se não assim, volto à toca!

Rei
Tocar-te à toca só posso eu.

Rato
Toco-me à toca e lá me tocaio!

Rei
Nem mais um passo, eu rei contigo posso!

Rato
Uhmm, sei quando a coisa fica séria. Roga então o rato um reles rastejo.

Rei
Nem mais um passo, se a palavra calo, ainda mais a vida casso!

Rato
É-me suficiente o gato que a mim caça, ao rei a palavra passo!

Rei
Negando-te banquetes e mil orações, concedo-te migalhas e algumas poucas palavras falhas!

Rato
Pouco me adiantam as palavras se tenho presas as patas e esganada a garganta.

Rei
Roedor, seja por demais comedido, se não assim, na ratoeira acabas.

Rato
Como me dito, serei comedido, desde já ratinho palavras e com cuidado formo cada oração, como o avarento se faz rico a cada tostão.

Rei
Gastas o pouco da sorte que tens, perdulário rato! Guardas à boca só besteira.

Rato
Acaso não gaguejo coisa verdadeira?


Rei
Verdade que te faz irmão da temida ratoeira.

Rato
Dispenso o fatal parentesco. O que dos ratos se diz não é o que penso.

Rei
A dar-te cabo estou assim propenso.

Rato
É de pouco custo ser com rato tão moderado justo.

Rei
O fio da espada é a verdade ao qual me fio. Até o servo que me serve sabe que não tolero desafio. Assim, sem hesitar, êxito sempre logrei no meu reinar!

Rato
É voz corrente o logro, diz-se pouco do êxito.

Rei
Meu governo é tido por ímpio e discreto.

Rato
Longe deste rato pensar que vosso reinado se faz pelo roubar e pelo ladrar.

Rei
Almejo reinar tomado nos braços do povo.

Rato
Periga é do povo tomares tomates.

Rei
Aspiro tão só o povo em meus braços.

Rato
Braços que abraçam como urso.

Rei
Farei disto um belo discurso.

Rato
Com palavras fiadas em fio de espada, o rei quer é à nossa vida dar curso.

Rei
Economiza palavras, rato pobre e insolente!

Rato
Rei rico e insolvente, ocultais fraquezas esbanjando riquezas.

Rei
Com bravura ergo impérios.

Rato
Não se constroem impérios lançando impropérios!

Rei
Mas imponho medos com tais arremedos.

Rato
És com a corte perdulário, mas para a plebe ratinhas salário.

Rei
Muito prezo o erário. A todos quero bem e do povo sou refém. Nunca fui vil com quem me é servil.

Rato
Vê-se pelas finas vestes da rainha e pela rota roupa da criada. Vê-se pela seda do nobre e pelos trapos do pobre.

Rei
Devo admitir que muito me custa a vetusta rainha, mas o tesouro também muito serve à humilde serva.

Rato
Mas quem convosco barganha muito apanha e nada ganha.

Rei
Enganas tu, pequeno rato.

Rato
Imenso rei, esganais vós quem a vós não vos é grato. Enganais e esganais. Vossos sábios portam mentiras nos lábios, vossos soldados à força nos levam à forca.

Rei
O poder manda ser arbitrário com quem nos é contrário. Mas me contenho, aos inimigos já basta a lei, assim sempre pensei. Um rei sábio as glórias propaga, as perdições as esconde por paga. Um rei culto os erros com acerto mantêm ocultos.

Rato
O mau ato não se torna menos vil tão só porque ninguém o viu.

Rei
Mas as vilezas do mundo se encobrem com o metal vil.

Rato
Não vos importa as agruras do povo?

Rei
As lágrimas me escorrem de montão!

Rato
Lágrimas de crocodilo brotam de um escorpião.

Rei
Pareces nada compreender sobre as forças e as forcas. O poder tudo permite, com poder sou absoluto.

Rato
E deixa muita viúva em luto.

Rei
Não se pode agradar gregos e troianos.


Rato
Nem ratos, nem humanos.

Rei
Cala-te, bicho falante! Dai-me sossego de teus lamentos, rei sou assoberbado.

Rato
E eu por vosso ato um rato apurado. Porque alçais da coroa acima essa vassoura?

Rei
Me armo contra ratos e ameaças mouras.

Rato
Baixais à poeira do chão o que vós ao céu fazeis arma, pois é vosso palácio que requer faxina, não o rato tão ignóbil sina.

Rei
És um roedor em más circunstâncias. Largo da vassoura o cabo e tua vida com as mãos dou cabo.

Rato
Aiii!!! Sou um rato apurado em apuros, um roedor que já sente dor e tem a vida em desapego sem nem ainda o pescoço pego.

Rei
Ah, eis-te em minhas mãos. Vê rato como posso ser cruel?

Rato
Como um monstro assim demonstra.

Rei
Como de meu reinar duvidar ousas?

Rato
Vossas fortes mãos sobre meu pescoço pousam. Sinto o poder até não mais poder. Oh, por tão pequena falta o ar agora me falta! Tão preso estou em vossas mãos que só o ar me escapa.

Rei
Minha causa é justa!

Rato
Deveras justa é vossa mão que laceia o pescoço meu. Por causa de tanta justeza minha garganta roga piedade a vossa alteza.

Rei
Como conceder clemência a quem não mostra decência? Como ousas de repente a tanto poder fazer frente?

Rato
Todos que vos fizeram frente sucumbiram às vossas costas. Sumiram todos em longos calvários, à mercê de vossos julgamentos sumários.

Rei
Folgas ver-me como salafrário, por isso agora lhe tenho tanto apego.

Rato
Nada mais falso Majestade. Tanto que peço o desapego de vossas mãos de meu pescoço.

Rei
Sentis agora a força real?

Rato
Bem real esses dedos grandes... São duas manzorras a esganar um singelo pescocinho. Atiras com mosquetão mirando um mosquitinho.

Rei
Para tanto ardil nunca é pouco um fuzil.

Rato
Majestade, minha vida me é um tanto cara para findar com carabina.
Quanto ao meu aperto, folgai vossos muitos dedos para que eu também folgue meus muitos medos.

Rei
Tua sorte com a morte esbarra.

Rato
Esbarro esbaforido na dor e rogo a Vossa Alteza mais sutileza.

Rei
De tua toca, tocas fogo em meu trono. Aspiras poder inspirando o povo à revolução?

Rato
Sou louco o bastante comigo mesmo para sê-lo com os outros.

Rei
Aos tantos revoltosos, minha muita cavalaria.

Rato
Fujo de ambos, da foice e do coice.

Rei
Tramas...

Rato
O caminho do trono é muito longo para um simples camundongo. Fico no roer do queijo enquanto hordas devoram vosso império pelas bordas.

Rei
És devoto do nobre queijo. Seu estômago prega a revolução.

Rato
Meu estômago plebeu ronca, mas ele só pleiteia digestão.

Rei
Gordo estás, em meu reino chafurdas tu em engordas e engodos.

Rato
Tem fome quem não come. Aliás, minto, não tenho fome, estou faminto.

Rei
Meu palpite é que a fome só desperta mais apetite. Tua penúria é uma afronta à minha luxúria. Nestes casos, me escudo aplicando-te um bom cascudo.

Rato
Oh, mundo estranho, não só me bate a fome, mas do rei também apanho.

Rei
O rei logras...

Rato
Se alguém engano, logo logro, mas não o rei, neste ostentoso  palácio. Só logro entre os meus, em logradouros.

Rei
Oh, eterna injustiça, ao rato e ao aldeão sempre ofertei meu coração.

Rato
À corte sois cortês, ao centro sois rei atento, mas às periferias ofertais tão só patifarias.

Rei
Reconheço que para mais longinho a pesada mão do rei pousa em quem abusado ousa.

Rato
Pousa o rei cada vez mais longinho... conquistais terras de modo aterrador.

Rei
Ainda que distante, clama o povo ao rei que ama.

Rato
Ode a um bode...

Rei
Um bode que tudo pode.

Rato
Gentilezas do assustado gentio não lhe poupa o ato vil.

Rei
As palmas tão só louvam reis de boas almas.

Rato
Boa alma oculta em espírito de porco. Acena-lhes com as palmas das mãos e chuta-lhes com as plantas dos pés.

Rei
Poder é um grato ofício no qual se combinam o tolher e o ceder.

Rato
O rei mais tolhe e o povo mais cede.

Rei
Não me furto a servir o povo.

Rato
Não vos furtais aos roubos, com arroubos furtais.

Rei
Chafurdo para erguer aos céus um império. Amealho poder de migalha em migalha.

Rato
Para tanto, tens a fina espada e o gordo tributo. Miras migalhas e fomentas fome.

Rei
É parte do jogo bruto, o roubar e o tributo.

Rato
Tomas brutalidade por atributo

Rei
Oh, Expresso meu mau pela ponta do punhal.

Rato
O ódio é sórdida chama que a tirania só inflama.

Rei
A fúria e as tramas são minhas chamas.

Rato
O rei teima e nos queima. Que tal algo análogo a um diálogo?

Rei
Indago melhor com a adaga. Sinto cheiro de rebelião. Confessas rato que há anos acalentas planos.

Rato
Meus intentos são intestinos, eles se calam com um queijinho.

Rei
Como ousas fugir à mão real que em ti pousa?

Rato
Louvo à vontade vossa majestade, mas a vida me é grande coisa. A vida do rato simplória, a vida do rei em glória.

Rei
Ah, amo tanto os louros como os tesouros. Ao povo, vida simplória, ao rei, a glória.

Rato
O erário é refém de um rei temerário.

Rei
Seu mal falar traz de volta sinais de uma revolta.

Rato
O motim não nasce em mim. O povo se inflama se falo ou se me calo.

Rei
Ainda que assim, depois de uma revolta o rei sempre volta.

Rato
Os atos com que vós os ratos punem tanto mais os ratos unem.

Rei
Para cada revoltoso sempre acho um capacho. Caminham em cortejos à sombra de meus bafejos.

Rato
Sob seus sopros, as gentes sempre ao vento, sem provento. O povo até sonha, mas logo desperta com vossa peçonha.

Rei
É da natureza das coisas que cada vez mais imposto eu cobre, do pobre, não do nobre.

Rato
Por mais que nos espete, não tenha por natural tudo aquilo que se repete.

Rei
Confronto a traição com pétrea tradição. Os inimigos cerco, ao povo circo. Os rivais que sigam em fuga coxos com os olhos roxos. No que mais resta, tudo é festa: confetes cobrem bofetes, flores ornam dores.

Rato
É o carnaval encarnando o mal.

Rei
Um tanto de mal creio normal. Meus críticos me julgam por motivos políticos. Só porque sob meu poder quero todo o mundo conter. Há os que têm fascínio por meus domínios.

Rato
De outras bandas nada quero. Tudo que está em outra calçada não é de minha alçada. Toleras partilhar com o rato o mesmo lar?

Rei
Contanto que eu tenha tudo.

Rato
Contudo, não divides nada.

Rei
Nem tudo subtraí do povo.

Rato
A outra parcela o delfim deu fim.

Rei
Em meu seio muitos anseios. Nada cobiças?

Rato
O que me move é estar quietinho. Minha única cobiça é encher linguiça.

Rei
Ora, tu tão pirralho e tanto pirraceias.

Rato
E vós um tanto negaceias e muito me negais ceias.

Rei
Tuas más rimas reprimas. Estou farto de injúrias, elas assanham minhas fúrias. Guardas!

Rato
Mais a queijos sou dado do que a seus soldados.

Rei
Se singras entre o povo, sangraras perante o rei.

Rato
Súbito, eis eu um rato em decúbito.

Rei
Confessa e tuas palavras meça. Ei de escovar o rato a contrapelo. Eis o meu carinho, para tanto o pelourinho.

Rato
Nego o escovar para o rei não me encovar.

Rei
Ei, volta cá rato, larga as porcas rimas, vem sucumbir ao meu ato.

Rato
Tendes vós por divertido meu sangue vertido.

Rei
Retorna cá figura dentuça.

Rato
Nem que a vaca tussa. Abaixo de seu imenso nariz, ergo solene minha humilde fuça. Vou-me daqui embora e que o povo faça sua hora.

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