sábado, 6 de dezembro de 2014

sinistro... ()


Ainda que em trânsito lento, os dois veículos se aproximaram de direções opostas e tocaram de leve latas. Do acidente restaram delicadas ranhuras e a troca discreta de cores – um preto, outro branco; o branco no preto, o preto no branco. Janela a janela, se entreolharam os condutores ante o acidente débil. Um então engalfinhou olhares com o outro, e, não fosse a proximidade entre portas, uma roçando a outra, impedindo-os de extravasar a fúria em choro ou soco, haveria muito mais a se lamentar em vergonha ou dor.  A posição dos veículos a lhes negar ações mais intrépidas fê-los tirarem proveitos da língua. Deu-se então na curta vida daquele espetáculo o ato das xingações. Peito estufado, um motorista pôs-se a imprecar com tanto talento que desconcertou o sujeito preso à outra janela. Mãos já não no volante, mas a esmurrar o vazio, o talentoso homem discursou bonito, ainda que usando palavras feias. Sugeriu ele ao outro um vasto repertório de práticas que qualquer vigário, mesmo os mais progressistas, certamente as teriam por indecentes e dispensáveis à reprodução da espécie. Insinuou o hábil orador que o colega da outra janela contaria com parentes próximos – a mãe e as irmãs, se permitem o detalhe – a praticar atos de amor em troca de algum níquel. Mesmo que a xingação chocasse alguns poucos e divertisse muitos, nenhum espectador quis se intrometer, ainda porque os muitos a incentivassem entre apupos e aplausos. Encurralado entre o volante e os impropérios, o motorista da outra janela reagiu com outros insultos, esses apoiados em acenos vis, visto que seu repertório era mais pobre e pouco ajeitado à ocasião. Nas imprecações, comparou o oponente a figuras animais, supôs o outro com deficiências cognitivas, impôs-lhe alguma analogia escatológica, e só. Na eminência do nocaute verbal, chegou em sirenes estragando a festa a polícia. E pôs os condutores calados e seus carros riscados para rodar. 

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