Ainda que em trânsito lento, os dois veículos se aproximaram de
direções opostas e tocaram de leve latas. Do acidente restaram delicadas
ranhuras e a troca discreta de cores – um preto, outro branco; o branco no
preto, o preto no branco. Janela a janela, se entreolharam os condutores ante o
acidente débil. Um então engalfinhou olhares com o outro, e, não fosse a
proximidade entre portas, uma roçando a outra, impedindo-os de extravasar a
fúria em choro ou soco, haveria muito mais a se lamentar em vergonha ou dor. A posição dos veículos a lhes negar ações mais
intrépidas fê-los tirarem proveitos da língua. Deu-se então na curta vida daquele
espetáculo o ato das xingações. Peito estufado, um motorista pôs-se a imprecar
com tanto talento que desconcertou o sujeito preso à outra janela. Mãos já não
no volante, mas a esmurrar o vazio, o talentoso homem discursou bonito, ainda
que usando palavras feias. Sugeriu ele ao outro um vasto repertório de práticas
que qualquer vigário, mesmo os mais progressistas, certamente as teriam por
indecentes e dispensáveis à reprodução da espécie. Insinuou o hábil orador que
o colega da outra janela contaria com parentes próximos – a mãe e as irmãs, se
permitem o detalhe – a praticar atos de amor em troca de algum níquel. Mesmo
que a xingação chocasse alguns poucos e divertisse muitos, nenhum espectador
quis se intrometer, ainda porque os muitos a incentivassem entre apupos e
aplausos. Encurralado entre o volante e os impropérios, o motorista da outra
janela reagiu com outros insultos, esses apoiados em acenos vis, visto que seu
repertório era mais pobre e pouco ajeitado à ocasião. Nas
imprecações, comparou o oponente a figuras animais, supôs o outro com
deficiências cognitivas, impôs-lhe alguma analogia escatológica, e só. Na
eminência do nocaute verbal, chegou em sirenes estragando a festa a polícia. E
pôs os condutores calados e seus carros riscados para rodar.
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